«Invade-me um cansaço que nunca tinha
sentido, uma espécie de formigueiro na alma, me obriga a fechar os olhos e a
ir, na memória, a lugares há muito não visitados, como o carvalho da Quinta das
Rosas em Seixas, o meu jardim dos arredores de Londres, o pátio do colégio, o
claustro da Junqueira, a porta da cozinha da casa da Estrela, por onde entrava
o mensageiro Pedro. Por fim, fixo-me na azálea junto ao muro desta mesma casa.
Nem sequer me ocorre que ainda lá está e que é fácil sair pela janela francesa,
onde neste momento está a bater o sol poente, para colher uma das suas flores.
Não é a azálea de hoje que me enfeitiça as lembranças mas a de há oito décadas
e não encontro, dentro de mim, diferença entre essa louca de quinze anos e o
meu moribundo coração. Os três casamentos de Camilla S. é a autobiografia de uma velha senhora que aos noventa
anos decide contar a sua vida, incluindo o que ela pode ter inconfessável.
Desde os ambientes à narrativa (que atravessa quase um século de História),
estamos perante um livro adequadamente romântico e profundamente moderno, onde
estão presentes a poesia e o maravilhoso…». In Sintra, Janeiro de 1982
«A
idade tem coisas intrigantes, pequenas surpresas no funcionamento do corpo,
novas incapacidades e necessidades; mas a que mais me intriga é esta bizarra
relação com o tempo. Acontece-me, cada vez com maior frequência, não saber onde
estou. Não me refiro ao espaço, reconheço sempre a minha casa, esta saleta
acolhedora onde, na papeleira a que me apoio neste instante, há sempre uma
jarra de cristal com rosas amarelas. O que eu não sei, muitas vezes, é em que
momento da minha vida me encontro. Se por aquela porta vai entrar a minha tia-avó
Joséphine, um dos meus maridos, a minha neta Camilinha, ou a minha mãe-de-leite,
Paca-a-vidente, para me lançar a sua benção cigana. Com esses farrapos
de vida que me aparecem na memória pensei escrever a história da minha
atribulada existência, já que um editor meu amigo me disse, aqui há dois anos
ou, talvez há vinte, que qualquer pessoa com o mínimo de cultura e talento e
uma vivência interessante, poderia escrever um aceitável e até bom romance autobiográfico.
Mantive um diário até muito tarde, era moda no meu tempo, escrevi ali muitos
factos, muitos pensamentos secretos, alguns sonhos proibidos, mas nem só de
realidades se faz uma vida, acho que disto tudo, bem concertado, pode nascer um
livro. E como tenho todo o tempo do mundo ou nenhum (só Deus sabe), que é a
melhor situação para começar qualquer trabalho de fôlego, inicio aqui a escrita
desta obra à qual, por falta de imaginação, decidi pôr o meu próprio nome, pois
reservo-me desde já o papel de protagonista. Se chegar ao fim é à Camilinha que
o vou entregar para que lhe actualize a ortografia, reveja a sintaxe, tire e
ponha o que lhe parecer e o expurgue das minhas eternas expressões afrancesadas,
tudo, enfim, o que ultrapassar o razoável para uma leitura amena e portuguesa. Se
há coisas inconfessáveis na minha vida, decidi confessá-las agora, porque não,
poderão servir de exemplo e proveito a outras mulheres e escandalizar os
homens, o que é bom. A grande vantagem de ter noventa anos é que tudo se torna realissimamente
indiferente, perde-se em pudor o que se ganha em humor.
4
de Janeiro de 1902
Estou
na banheira de cobre da sala de banho dos meus tios Alberto e Joséphine. Esta
banheira é uma novidade cá em casa, veio de França há poucos meses e é mostrada
às visitas mais íntimas. Eu tenho a minha própria sala de banho. É uma divisão grande,
sem cera nas tábuas do chão que são esfregadas, tenho uma banheira redonda de
zinco, que se arruma ao alto junto às cortinas de algodão branco com bordado
suíço, uma infinidade de jarros de esmalte, um lavatório de porcelana e jarro
igual que tem um passarinho azul numa ramada florida. Há um armário com toalhas
onde se guardam também algumas das minhas camisas de noite das quais, depois de
dobradas e empilhadas, pendem muitas fitinhas de cetim. Por qualquer razão que
me ultrapassa, a Paca decidiu que hoje o meu banho é na banheira de
cobre, que depois de cheia fica tão quente, que é preciso forrá-la com um
grande lençol de banho para não queimar os braços e os pés. A Paca,
envolta num grande avental de borracha, lava-me o corpo, canta-me cantigas,
ri-se da penugem nascente do meu púbis, das minhas maminhas que mal despontam,
das costelas que se contam com o dedo, uma a uma.
Os
meus doze anos incompletos e magrinhos espojam-se à vontade na banheira dos
tios. Estou alegre e brinco, como a criança que sou. A Paca pega-me ao
colo envolta numa grande toalha de linho aquecida a poder de escalfeta e
leva-me para o quarto a cantarolar como uma cigana, ai Nena mi Nena áau! Ai mi Nenita áaau! Senta-me na cama. Depois de
me enxugar com muitas cantigas e carinhos, começa a vestir-me, avisando-me, com
uma lágrima ao canto do olho, que pela primeira vez irei usar um espartilho, me
fantasiará de mulher. Primeiro as meias brancas, bem esticadas e seguras com ligas
de fios de borracha, a camisa decotada de baptista, os culotes do mesmo tecido
e justos sob o joelho com folhinhos de renda. Depois duas sub-saias debruadas
de guipur, por cima o temido espartilho, apertado quanto baste para fazer
realçar o peito imaginário, a anca inexistente. Sinto-me adulta. Por cima vem
cair a saia do vestido, cor de peito de rola, o corpinho cheio de babados
sublinhados a sutache lilás. A Paca penteia-me, perfuma-me, calça-me os
sapatos depois de lhes esfregar as solas com pedra-pomes. E por último, requinte
dos requintes, empoa-me o nariz». In Rosa Lobato Faria, Os Três Casamentos de
Camila S., Edições Asa, Porto, 3ª Edição, 1997/1999, ISBN 972-41-1904-1.
Cortesia
ASA/JDACT