O oráculo
«(…) Do meu pai só conservo a fugidia imagem de um
rapaz que me sentava sobre os joelhos e que era tão belo, de uma beleza tão
resplandecente, que eu não sabia (ainda hoje não tenho a certeza) se ele era de
facto o meu pai ou uma daquelas divindades luminosas que aparecem às crianças.
Pensei nisso muitas vezes, mas creio que se fosse uma aparição o seu olhar não
seria tão triste e ausente. A recordação tornou-se mais ténue com o rolar dos
anos, porém julgo que nunca esquecerei, ao menos, aqueles olhos muito claros,
de um tom verde-mar, que me fitavam quase sem atentar em mim. Quando compreendi
que já não tinha pai, procurei saber o que lhe acontecera e quem ele fora. Da
minha mãe não obtive informação alguma, quase só falava dele para rezar ao seu
espírito (acusando-o porém de a ter abandonado) ou para carpir a sua morte, o
que acontecia sobretudo quando alguém a contrariava. Foi Camalo, o meu tio, que
um dia me contou (com uma amargura que não procurou disfarçar) a história desse
casamento de que eu sou o único fruto. Já nessa altura eu sabia, por intuição
infantil, que a escolha da minha mãe nunca lhe agradara. Camalo era um homem
austero e reservado. Após a morte do meu avô assumira a responsabilidade de
proteger a irmã, quinze anos mais nova. Enviuvara cedo, sem filhos, e decidira
não voltar a casar até a jovem Camala encontrar um marido capaz de a defender
em caso de perigo, pois vivia-se numa época agitada e constantemente chegavam
ao Cineticum notícias de combates travados entre os governadores da Hispânia
Ulterior (como os ocupantes lhe chamavam) e os povos das regiões não
subjugadas. Na Bética e na Betúria eram frequentes as incursões dos Lusitanos e
os mercadores provenientes de Gadir contavam histórias inquietantes de
sangrentas revoltas contra Roma. Por tudo isto, o desejo de Camalo era casar a
irmã com algum sólido e influente comerciante que soubesse mantê-la ao abrigo
do infortúnio. Mas os homens são bonecos nas mãos dos deuses.
A história foi-me
contada quando eu tinha doze anos. Havia já algum tempo que a minha mãe, cada
vez que eu fazia uma travessura própria da idade, me dizia num tom grave e
pomposo: Tongio, não podes comportar-te como se fosses um garoto
qualquer! Porquê?, perguntava
eu só para ganhar tempo. E a resposta, já conhecida, não se fazia esperar: Lembra-te
de quem és. Lembra-te de que tens sangue real. Dizia isto e recusava-se a
dar qualquer explicação. Não me foi difícil perceber que tais palavras tinham o
condão de exasperar o meu tio. E percebi mais: ele e a minha mãe estavam
empenhados numa luta surda em que eu era o despojo de guerra. Um dia Camalo não
resistiu e, quando a odiada frase voltou a ser proferida, ergueu-se e fez-me
sinal para o seguir ao mesmo tempo que, com um olhar cuja dureza me chocou,
fazia calar os protestos da minha mãe. Durante alguns instantes insuportáveis,
os dois enfrentaram-se quase com raiva; depois ela cedeu e o meu tio saiu para
o jardim, com o corpo ainda inteiriçado pelo esforço que fizera para se
dominar. Eu fui no seu encalço.
Era um dia de Primavera, um dia doirado de sol e
pairava no ar um cheiro a flores, a mel e ao pão quente que os escravos estavam
a tirar do forno. Camalo deteve-se num recanto do jardim e eu esperei que ele
escolhesse uma sombra e me mandasse sentar. O seu ar grave, mais grave que o
habitual, provocou em mim uma sensação desconfortável. Cedo ou tarde teríamos
esta conversa, disse ele, quase bruscamente, e penso ter chegado a altura. Começou
então uma narrativa que eu ouvi com avidez, bebendo-lhe as palavras. Escolheu
uma linguagem própria para a minha idade e omitiu certos pormenores, mas foi
suficientemente claro para que mais tarde eu pudesse preencher as lacunas do
relato com o meu conhecimento de homem adulto. Quando a minha mãe completou
quinze anos, tomou a inesperada decisão de acompanhar Camalo numa das suas
viagens de negócios. O irmão deixara-a sempre à guarda de servos de confiança,
mas naquele ano ela teimou em fazer a viagem a Baesuris e de lá, seguindo o
curso do Anas para norte, até à cidade de Myrtilis.
O meu tio tentou recusar, mas conhecendo o
temperamento da minha mãe sei que isso não era fácil. Para fazer prevalecer a
sua vontade podia rebelar-se abertamente, recorrer a um sorriso humilde ou
entrar em crise de choro. Em qualquer dos casos não desistia, nunca dava
quartel e empregava todas as armas ao seu alcance. Assim, durante a discussão,
argumentou que não haveria perigo na viagem, porque, como Camalo muito bem
sabia, reinava uma certa paz na Bética e nas terras de entre Anas e Tagus,
habitadas por Célticos e Lusitanos. Ainda que houvesse bandos de salteadores,
acrescentou, os homens armados que protegiam a mercadoria defenderiam também
aqueles que a acompanhavam. As razões mais poderosas reservou-as para o fim:
uma recusa de Camalo iria ofender a Grande Deusa. De facto, era por devoção e
não por espírito de aventura que a minha mãe pretendia seguir na caravana.
Tinham chegado a Balsa notícias de prodígios ocorridos algures a norte de
Myrtilis. Ao que se dizia, a divindade manifestara-se ocultando a Lua, esse
astro que é a sua imagem visível no céu; feitos os sacrifícios e lidos os
presságios, os sacerdotes haviam anunciado que a deusa exigia a construção de
um santuário. O local exacto fora indicado, os trabalhos iam já a meio e de
todos os lados acorriam peregrinos. Era este santuário que a minha mãe queria
absolutamente visitar». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984,
composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa,
Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.
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