quarta-feira, 18 de março de 2015

Tópicos para a História da Civilização. Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «… a primeira certeza apreendida pelo espírito humano é a do ser, surpreendida através das percepções sensíveis. A essência do homem, do cavalo, da pedra não implica nenhuma necessidade que tal homem…»

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Filósofos Orientais
«(…) A inteligência suprema vê tudo, passado presente futuro, não no tempo, mas imediatamente porque o seu pensamento é eterno. Mas Deus não é a causa directa das acções, elas têm por si mesmas os seus próprios fins e finalidades. Não é pois responsável pelo mal que é o preço da liberdade e que é talvez o bem de tudo. O dom do ser está ligado à luz da inteligência. E a primeira certeza apreendida pelo espírito humano é a do ser, surpreendida através das percepções sensíveis. A essência do homem, do cavalo, da pedra não implica nenhuma necessidade que tal homem, tal cavalo exista. A existência é dada aos seres realizados, concretos, por um Ser que difere deles todos: não é uma destas essências desnudadas em si da existência, mas a sua essência é o seu próprio ser. O Criador é a causa primeira. Do Uno não pode vir senão o Uno. O Ser necessário produz uma só inteligência. Esta, sendo causada, possui necessariamente uma dualidade de ser e de conhecer. Ela introduz no mundo a multiplicidade; dela podem provir uma outra inteligência, uma Alma celeste, um corpo celeste. O sistema de Ptolomeu torna-se a escadaria da emanação criadora. A emanação desce de esfera em esfera até uma décima inteligência pura que rege não uma esfera mas o nosso mundo terrestre, formado, contrariamente aos outros, de matéria corruptível. A décima inteligência é o Intelecto Agente. Na Epístola sobre o Amor, o ser e a inteligência transbordam do Ser necessário como um rio e descem até aos extremos limites do criado. Uma ascensão da mesma amplitude, feita de amor e do desejo das criaturas pelos seus criadores, até ao Princípio supremo, responde à abundância deste dom. O Cânon de Medicina, em cinco volumes, tornou-se a sua obra mais célebre. Entrou no programa de ensino das Universidades europeias desde 1309 e o seu estudo prolongar-se-ia no Oriente até aos nossos dias e no Ocidente até ao século XVII. No primeiro volume do Cânon, Avicena aborda o corpo humano, a doença, as terapêuticas gerais. No segundo trata da farmacologia dos simples. No terceiro expõe a patologia especial de cada órgão. No quarto, estuda as febres, os sinais, os sintomas, os diagnósticos, a pequena cirurgia, as feridas, os tumores, as fracturas, os venenos. No quinto, expõe a farmacopeia. Reuniu os pontos mais importantes do Cânon num poema, traduzido no século XIII para latim, sob o título de Cantica Avicena. Al-Gazallí, Abu Hamid ibn Muhammad (Algazel, Tus, norte do Irão-Tus, 1111).
Leccionou em Nizamiyya, Bagdade, a mais importante universidade religiosa do Islão. Acometido por uma crise mística, peregrinou pelos principais lugares da religiosidade islâmica: Jerusalém, o túmulo de Abraão em Hebron, Meca, Medina. Regressou a Tus onde morreu rodeado de discípulos sufis. Al-Gazallí emerge como a cabeça maior da reacção antifilosófica dos teólogos, particularmente no livro Destruição dos Filósofos (Tahafut al-falasifa). Como um bom arrependido, assumiu como missão espiritual atacar os esotéricos, em particular o xiismo ismaili, os cristãos e combater o racionalismo neo-aristotélico, em particular Al-Farabí e Avicena. A filosofia só pode ser uma disciplina auxiliar da teologia especulativa, estabelecida a partir da fé e da lei muçulmanas. Só iluminada pela fé, a razão conduz à sabedoria. Todo o conhecimento está condicionado pela iluminação divina e deste conhecimento depende a vontade humana. Numa síntese da doutrina moral muçulmana considerava a teologia, a cabeça; a filosofia, a função racional; o sufismo, o coração; o direito, o braço operativo. A autoridade é uma consequência da própria estrutura da natureza humana. O soberano deve rodear-se de um conselho de doutos. O ideal de perfeição exige às vezes que sacrifiquemos o dever da rebelião contra o tirano e noutras ocasiões obriga ao sacrifício dos desejos e direitos individuais.

Filósofos andaluzes
A filosofia oriental islâmica desenvolve-se, como dissemos, do século IX até aos meados do século XI. Por sua vez, no Islão ocidental, a filosofia arranca nos princípios do século X com Ibn Masarra e floresce entre a segunda metade do século XI e os finais do século XII. O primeiro historiador da filosofia no Andaluz foi Said al-Andalusi (1029-1070) que nasceu em Almeria e exerceu o cargo de juiz em Toledo. O seu livro Tabaqat al-umam (Livro das Categorias dos Povos) constitui, segundo Asin Palacios, o primeiro ensaio originalíssimo de síntese sobre a evolução da cultura humana nas diferentes raças e povos da terra. Este livro mostra que a filosofia é uma árvore de lento crescimento e ainda que individual na sua expressão, reflecte sempre um movimento colectivo de fundo. Esse movimento colectivo arranca dois séculos após a conquista islâmica com uma inacreditável constelação de sábios: o matemático Maslama de Madrid e o astrónomo Azarquiel, os médicos Yahya ibn Ishaq, autor do primeiro receituário médico andaluz, o farmacólogo toledano Ibn Wafid, o judeu cordovês Ibn Hasday ibn Saprut e ainda os médicos Abulcasis e Avenzoar, os poetas Ibn Suhayd, Ibn Saydun e al-Mutamid, os historiadores Ahmad al-Razi e Ibn Hayyan, os filólogos Al-Zubaydi e o murciano Ibn Sida, filósofos como Ibn Masarra, o judeu malaguenho Ibn Gabirol e al-Kirmani». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de I.Camões/JDACT