Os mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com
que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo.
Oriente e mitologia dos Descobrimentos. De João Barros a Bocage
Descobrimentos. Classicismo e Mito do Longínquo. João de Barros
«(…) Este breve exemplo,
muito específico, remete-nos para a ideia inicial: humanista estático,
pouco ou nada viajando (além da viagem citada, o historiador fez apenas uma
outra, em 1535, pela costa do
Brasil, numa malograda tentativa de tomar posse e povoar uma capitania doada
pelo rei), João Barros transfere para a palavra, mais propriamente, para a
fixidez da palavra a partir da aprendizagem clássica, a sua fascinação pelo longínquo
desconhecido. E assim, suponho que sem cairmos em interpretações fantasistas,
poderemos dizer que, para lá do facto de João Barros ser o cronista oficial
encarregado destas cousas das partes do Oriente,
como diz o próprio historiador evocando a intenção de Manuel I, concretizada
por João III, consagrando o escritor os
dias ao ofício e parte das noites a esta escritura da vossa Ásia, cumprindo
com o desejo que sempre tive desta empresa, para lá desse encargo
oficial, houve da parte de João Barros uma verdadeira
fascinação pelo Oriente. Tal fascinação corresponde, é certo, ao rigor
documental: Sousa Viterbo, citado por António Baião na referida introdução ao
volume I das Décadas, diz em O
orientalismo português no século XVI que João Barros era não só
possuidor de colecções de manuscritos orientais, como também conhecedor das
línguas pérsica e arábica. Todavia, para lá desse rigor, ela corresponde sobretudo,
parece-me, a uma visão cósmica em que Portugal surge nitidamente engrandecido
pelo próprio risco de sair dos seus limites europeus e ir ao encontro do
Oriente. Tal atitude está bem patente, sobretudo, na Primeira Década (Lisboa, 1552),
intitulada Dos feitos que os Portugueses fizeram no descobrimento e
conquista dos mares e terras do Oriente, mas ela prolonga-se ainda nas Décadas II (Lisboa, 1553), III (Lisboa, 1563) e IV (incompleta, edição de
João Baptista Lavanha, refundida, Madrid, 1615).
O risco que implicava
esse fascínio mítico, podemos constatá-lo desde o início da Primeira Década, quando se evoca
os conselhos gerais reunidos por Manuel I para discutir o descobrimento da
Índia: Sobre o qual caso […] teve alguns gerais conselhos:
em que ouve muitos e diferentes vótos, os mais foram que a Índia não se devia
descobrir. Por que, além de trazer consigo muitas obrigações por ser estado mui
remoto para poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino
que ficaria ele sem as necessárias para a sua conservação. Um
pouco mais adiante, aduzindo das razões materiais que o levam a defender o
descobrimento da Índia e daquelas terras orientais, o rei evoca perante
Vasco Gama as fabulosas riquezas dessas paragens longínquas em termos
igualmente míticos, pois a experiência a que alude em nada de concreto
se baseia. Por outro lado, no capítulo VII, fazendo uma universal relação da
província da Índia, João Barros entrega-se à minúcia
geográfica. Todavia, apesar das suas pretensões científicas nem por isso
a terra a que propriamente chama Índia deixa de ter a aura mítica de algo
antiquíssimo, fora do tempo, fabuloso. Atentemos, por exemplo, na
seguinte passagem descritiva, a qual, para além da descrição concreta, ascende,
creio, a um plano de mítica visão de terras desconhecidas, descrição feita por
um homem culto que delas nunca teve conhecimento directo e que laboriosamente
as imaginou As quáis [fontes dos rios], peró que
sôbre a terra arrebentem distintas em os montes a que Ptolomeu chama Imáo, e os
habitadores deles Dalanguér e Nangracot, são estes tão conjuntos uns aos
outros, que quási querem esconder as fontes destes dois rios. E, segundo fama
do gentio comarcão, parece que ambos nascem de uma veia comum, donde nasceu a fábula
dos dois irmãos que anda entre êles …
João Barros imagina mesmo uma faustosa cena real bem do
Oriente, cena fora da cidade que compara à idílica contemplação do campo
nas nossas quintans, ou seja, quintas, arcaísmo que na toponímica geral
ainda hoje se conserva: […] também el-rei estava fóra da cidade em uns
paços, que seriam dela quási meia légua, entre palmares e a gente nóbre
aposentada por derredor, ao modo que cá temos as quintans. Pode dizer-se que nestas passagens,
como noutras da obra deste rigoroso clássico da história da nossa expansão
ultramarina, oficialmente glorificado, o símbolo, que constitui a essência
mítica da descrição histórica e que consagra a mitologia como motor da história,
ilumina os acontecimentos cronologicamente situados, conferindo-lhes uma
significação transhistórica. Por outro lado, a própria ideia, sem dúvida dogmática
e pouco humanista, de uma evangelização necessária e útil, é posta em causa, e
é-o por dois motivos. Primeiro, pela premonição astrológica de um desastre,
evocado no capítulo IX. … fizera [um dos principais mouros de
Calecut] a pergunta a algumas pessoas que usam do ofício de astrologia e
doutras artes que daqui dependem, uma das quais pessoas […] em um vaso
de água lhe mostrára as naus perdidas, e mais outras a vela, que dizia partirem
de mui longe para vir à Índia, que a gente de elas seria total destruição dos
mouros daquelas partes.[…]Finalmente com esta história, […] a conclusão
da consulta acabou que buscasse todos os modos possíveis, para sumir os nossos
navios no fundo do mar, e que as pessoas, como ficassem em terra, um a um os
iriam gastando, com que não houvesse memória dêles nem do que tinham descoberto».
In Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve,
Conselho da Europa, Lisboa, 1983.
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