terça-feira, 24 de março de 2015

O Conto da Sereia. Lenda dos Marinhos. Gonzalo Ballester. «Ainda estou a ver, nas páginas de ‘Blanco y Negro’, lá pelo começo dos anos vinte, a ilustração em que aparece a “Sereia” no seu trono e diante dela um cavaleiro…»

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«(…) Uma vez o meu marido teve de embarcar só para ir a Santa Uxia, que é como quem diz aí defronte, e à lancha naufragou e não tornei a vê-lo mas tão-pouco a ouvir a voz da Sereia. De maneira que como vos disse: de nada serve fazer batota. Mais tarde ou mais cedo também levará Alfonso. Porém aí tendes Payo, com os seus olhos castanhos. Esse acabará o curso de marinha e tomará conta dos barcos, que boa falta nos faz, e deixá-lo-ei ir para o mar nem que haja um ciclone sem que o coração me trema. A tia Rula era já bastante velha, embora caminhasse galharda e falasse sem gaguejos; mas por qualquer coisa nas veias azuladas das mãos, pareceu-me artrioesclerótica, e por aquilo em que acreditava, com pancada na cabeça. Demorou algum tempo a morrer, cinco ou seis anos; um dia Josefina disse-mo, mas sem dar importância: Lembras-te da tia Rula, a de Vilaxuán? Olha, morreu, e mostrou-me uma estampita funerária que lhe tinham mandado. Não recordo se então tornámos a falar dos Marinho e da Sereia, não me recordo: é muito provável que não. Era uma altura em que eu havia racionalizado convenientemente o fundo de lendas e fábulas incorporado às minhas recordações nos anos de meninice, e no que se refere àquela, tinha lido já o Nobiliário do conde de Barcellos, com as suas notas e explicações suficientes. E embora não andasse muito folgado de materiais literários, jamais me teria lembrado de tomar aquela história para dela extrair um relato, entre outras razões porque dona Emília Pardo Bazán já o fizera uns quantos anos antes. Ainda estou a ver, nas páginas de Blanco y Negro, lá pelo começo dos anos vinte, a ilustração em que aparece a Sereia no seu trono e diante dela um cavaleiro bípede! Não voltei a ler aquele conto desde então nem recordo o título nem se se trata em verdade do assunto dos Marinho ou de outro semelhante; mas inevitavelmente a comunidade de imagens actuou de alguma maneira restritiva. Por outro lado, o vaivém da minha maré pessoal afastou-me dos lugares e pessoas em que o assunto podia ser tema de conversa, até um ponto tal que quando escrevi o meu primeiro romance, cujo protagonista se chama com aquele apelido, atribui-o a outra família de Marinhos sem a menor prosápia mítica, da qual em todo o livro não consta a mais leve referência. Também não creio que se o tivesse feito de outra maneira mo teriam agradecido. E tinha-me esquecido, evidentemente, da falta de fé daquela dama tão empolada, a tia Eugénia, nos meus dotes de escritor, e da sua convicção, não expressa mas pelo menos insinuada, de que eu era um moinante. Josefina, menos esquecediça do que eu, à simples menção da tia Eugénia costumava torcer o nariz. O menos que lhe chamava era antipática.
Depois disto passou o tempo. Uma guerra, meu Deus, e outra guerra, quantas coisas e todas as sequelas! Um dia Payo veio visitar-nos, fardado, porque andava nas traineiras armadas, e contou-nos como corriam as coisas na família; que as irmãs estavam muito crescidas e que ele, naturalmente, terminara já o curso de piloto, e que quando aquilo acabasse navegaria nos barcos da casa, que iam pescar ao Grão-Sol. Perguntei-lhe distraidamente por Alfonso: respondeu-me que a mãe, para que não fosse para a guerra, arranjara-lhe um lugar no Estado-Maior, de tradutor ou coisa assim, porque se lhe davam bem as línguas e sabia duas ou três. Quando se foi embora, comentei com Josefina. Não teria Alfonso tentações de ir um sábado a San Sebastián, como muita gente fazia? Era de esperar que a Sereia não se tivesse mudado para a Concha. Mas Josefina disse para não me rir e que deixasse morrer a história. Morreu ali mesmo». In Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de la Sirena, Dafne Ensueños, O Conto da Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel, Lisboa, 1986.

Cortesia de Difel/JDACT