«(…) Uma vez o meu marido teve de embarcar só para ir a Santa Uxia, que
é como quem diz aí defronte, e à lancha naufragou e não tornei a vê-lo mas
tão-pouco a ouvir a voz da Sereia. De maneira que como vos disse: de nada serve
fazer batota. Mais tarde ou mais cedo também levará Alfonso. Porém aí tendes
Payo, com os seus olhos castanhos. Esse acabará o curso de marinha e tomará
conta dos barcos, que boa falta nos faz, e deixá-lo-ei ir para o mar nem que
haja um ciclone sem que o coração me trema. A tia Rula era já bastante velha,
embora caminhasse galharda e falasse sem gaguejos; mas por qualquer coisa nas
veias azuladas das mãos, pareceu-me artrioesclerótica, e por aquilo em que
acreditava, com pancada na cabeça. Demorou algum tempo a morrer, cinco ou seis
anos; um dia Josefina disse-mo, mas sem dar importância: Lembras-te da tia Rula, a de Vilaxuán? Olha, morreu, e mostrou-me
uma estampita funerária que lhe tinham mandado. Não recordo se então tornámos a
falar dos Marinho e da Sereia, não me recordo: é muito provável que não. Era uma
altura em que eu havia racionalizado convenientemente o fundo de lendas e
fábulas incorporado às minhas recordações nos anos de meninice, e no que se
refere àquela, tinha lido já o Nobiliário do conde de Barcellos, com as suas notas
e explicações suficientes. E embora não andasse muito folgado de materiais
literários, jamais me teria lembrado de tomar aquela história para dela extrair
um relato, entre outras razões porque dona Emília Pardo Bazán já o fizera uns
quantos anos antes. Ainda estou a ver, nas páginas de Blanco y Negro, lá pelo
começo dos anos vinte, a ilustração em que aparece a Sereia no seu trono e diante
dela um cavaleiro bípede! Não voltei a ler aquele conto desde então nem recordo
o título nem se se trata em verdade do assunto dos Marinho ou de outro
semelhante; mas inevitavelmente a comunidade de imagens actuou de alguma
maneira restritiva. Por outro lado, o vaivém da minha maré pessoal afastou-me dos
lugares e pessoas em que o assunto podia ser tema de conversa, até um ponto tal
que quando escrevi o meu primeiro romance, cujo protagonista se chama com
aquele apelido, atribui-o a outra família de Marinhos sem a menor prosápia
mítica, da qual em todo o livro não consta a mais leve referência. Também não
creio que se o tivesse feito de outra maneira mo teriam agradecido. E tinha-me
esquecido, evidentemente, da falta de fé daquela dama tão empolada, a tia Eugénia,
nos meus dotes de escritor, e da sua convicção, não expressa mas pelo menos
insinuada, de que eu era um moinante. Josefina, menos esquecediça do que eu, à
simples menção da tia Eugénia costumava torcer o nariz. O menos que lhe chamava
era antipática.
Depois disto passou o tempo. Uma guerra, meu Deus, e outra guerra, quantas
coisas e todas as sequelas! Um dia Payo veio visitar-nos, fardado, porque
andava nas traineiras armadas, e contou-nos como corriam as coisas na família; que
as irmãs estavam muito crescidas e que ele, naturalmente, terminara já o curso
de piloto, e que quando aquilo acabasse navegaria nos barcos da casa, que iam
pescar ao Grão-Sol. Perguntei-lhe distraidamente por Alfonso: respondeu-me que a
mãe, para que não fosse para a guerra, arranjara-lhe um lugar no Estado-Maior, de
tradutor ou coisa assim, porque se lhe davam bem as línguas e sabia duas ou
três. Quando se foi embora, comentei com Josefina. Não teria Alfonso tentações
de ir um sábado a San Sebastián, como
muita gente fazia? Era de esperar que a Sereia não se tivesse mudado
para a Concha. Mas Josefina disse para não me rir e que deixasse morrer a
história. Morreu ali mesmo». In Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de
la Sirena, Dafne Ensueños, O Conto da Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel,
Lisboa, 1986.
Cortesia de Difel/JDACT