«Quando
Margarida chegou à Casa da Azenha teve aquela sensação, não desconhecida mas
sempre inquietante, de já ter estado ali. Não era verdade. Vinha pela primeira
vez a Vila Real, com o intuito de fazer uma palestra sobre novas técnicas do
ensino da Matemática e os organizadores, cujo convite a lisonjeara, tinham-na
instalado num belo turismo de habitação em vez de no rotineiro hotel. Foi
recebida por três senhoras de meia-idade que se disseram irmãs e que, por
corredores que a Margarida pareceram labirínticos, a conduziram ao quarto. Durante
o trajecto, afigurou-se-lhe que as senhoras mudavam constantemente de rosto e
de imagem, isto é, a que lhe parecera gorda era agora magra, a que lhe parecera
alta agora era baixa e a que fixou melhor, pois fora a que falara e tinha uma
bata azul forte com flores brancas, estava agora de escuro, com um casaco de
malha com aplicações. Margarida pensou que estas alucinações se deviam ao vinho
do Porto que a fizeram beber na pequena ceia que se seguira à palestra, e achou
que uma boa noite de sono e a luz do dia a fariam rir desta maluqueira que lhe
atravessava a mente. A baixinha, de novo alta, surgiu inesperadamente com bolos
caseiros e chá de camomila, todas três em coro lhe desejaram boa-noite,
esperando que tudo estivesse a seu gosto. Confusa, Margarida agradeceu e jurou
que nada lhe faltava. Depois, fechou a porta à chave e preparou-se para dormir.
Foi aí que sentiu o cheiro. Um cheiro talvez a remédio, talvez a malmequeres,
talvez a creolina. Deu uma volta pelo quarto à procura da origem do cheiro e
não encontrou nada que o justificasse. Reparou então que a cómoda, na parede
fronteira à janela, estava coberta de fotografias que se pôs a analisar. Eram
fotografias antigas, a preto e branco, amarelecidas mesmo, e representavam
senhores e senhoras solenes e alguns meninos de canudos, com folhos a sair das
mangas de veludo, calções abotoados abaixo do joelho, a perninha traçada
mostrando a botina reluzente de graxa. Não havia crianças coloridas na praia,
nem noivas de véus flutuantes, nem grupos risonhos de adolescentes. Ali não
havia lugar a sorrisos. Todos sérios, todos austeros, provavelmente todos
mortos.
Margarida sentiu
um arrepio ao pensar nisto. Apalpou o colchão e encantou-se com o minucioso
bordado dos lençóis de cambraia. Verificou a luz da mesa-de-cabeceira e foi à
casa de banho fazer a sua toilette
nocturna. Tomou um duche delicioso, enxugou-se com uma toalha de óptima felpa.
Voltou para o quarto nua, pendurou uns jeans e uma tshirt que tirou da mala para vestir no dia seguinte. De repente
sentiu-se incomodada, como se alguém a observasse. E percebeu. Na parede
fronteira à cama estava um quadro a óleo representando um homem moreno. Um
belíssimo homem, por sinal, que, ao contrário das fotografias da cómoda,
parecia bem vivo e a olhava com olhos trocistas. Ela conhecia o truque dos
pintores que fazem com que as figuras dos quadros mirem os observadores para
onde quer que estes se dirijam. Mas aquilo era de mais. Não se tratava dos
olhos vazios e inexpressivos que já vira tantas vezes, mas de um olhar bem
vivo, irónico, crítico, apreciador, o olhar de um homem que conhece e ama as
mulheres, e instintivamente Margarida foi à mala buscar um pijama e vestiu-o.
O que é que queres? perguntou,
desafiadora. E ouviu nitidamente uma voz masculina, grave, doce, responder: tudo.
Ficou aterrada. Era muito estranho o que se passava ali. Meteu-se na cama, mas
não conseguia despregar os olhos do quadro. Foi com mãos trémulas que tirou os
brincos das orelhas e os pousou na mesinha-de-cabeceira, ao lado do castiçal. Castiçal? Claro, para quando
faltasse a luz. Que pelos vistos nunca faltava, porque a vela era nova. E o
homem a olhar para ela. Tudo, continuava a dizer, agora em silêncio. Tinha-a visto nua, o que poderia
esconder-lhe? A não ser o desejo que de repente a assaltou, e acreditou
que, durante o sono, ele desceria do quadro e viria violá-la, amá-la com todas
as forças, aventura de uma noite com um desconhecido, um feiticeiro, um
fantasma. Decidiu beber o chá de camomila para a ajudar a conciliar o sono.
Saiu cautelosamente da cama, esforçando-se por não olhar para o quadro. Mas
sentia os olhos dele como duas brasas. Queimando-lhe o corpo, os seios, o
ventre, as coxas, queimando-lhe a alma como um sortilégio. O seu instinto
feminino avisava-a de que não poderia contar aquilo a ninguém, nem a Mariana,
sua irmã e melhor amiga, que iria chamar-lhe doida, muito menos ao Pedro, seu
namorado de cada vez menos dias.
A verdade é que
o homem do quadro parecia ter uma inquietante semelhança com a pessoa por quem
estava apaixonada, mas, quando se está louco de amor por alguém, parece-nos ver
esse alguém em toda a parte. O chá acabou por fazer efeito e dormiu até de
manhã. Os lençóis de cambraia não guardavam qualquer sinal de violação ou de
lutas amorosas, tão lisinhos e arrumados como se ninguém ali tivesse dormido.
Margarida abriu os olhos e sentiu que qualquer coisa de muito estranho se
passava consigo. Deixou-se ficar de olhos fechados, buscando a certeza de que
não estava a enlouquecer. Para começar, não tinha o pijama vestido. Apalpou-se
sem olhar e sentiu um tecido finíssimo, idêntico aos lençóis. Pôde perceber as rosinhas
bordadas na gola, as nervuras do peitilho. Sentiu também que o tecido se lhe
enredava nas pernas, como se de uma camisa de noite se tratasse. Tinha a
certeza de ter vestido um pijama azul: casaco e calças. Mas quando ousou abrir
os olhos e levantar a roupa e espreitar para dentro da cama, viu a longa saia
cor-de-rosa cheia de babados. Foi ele, pensou. Está a fazer troça de mim. Mas
quando olhou para a parede, resolvida a perder o medo e a pedir-lhe
satisfações, o quadro não estava lá.
Então,
saltou da cama num pulo e dirigiu-se à casa de banho no intuito de tomar um
duche frio que lhe devolvesse a sanidade. Mas aquilo que viu só piorou a
situação. Em vez da retrete que instintivamente procurou, havia um penico alto,
de esmalte, com pássaros pintados. A casa de banho não era mais casa de banho
mas sim um quarto de vestir com um grande guarda-fatos cheio de vestidos
antigos. A um canto imperava um lavatório de cerâmica na sua armação de ferro e
paisagem cor de sangue, com árvores e passarinhos. O jarro igual estava pousado
no chão, cheio de água. Na prateleira da armação havia escovas com cabo, um
grande sabonete ovóide, uma luva
turca. Dos lados pendiam duas toalhas de linho. Havia ainda um semicúpio de
zinco com a respectiva toalha. As toalhas tinham uma linda barra bordada e eram
debruadas a renda de um dos lados. Lavou-se como pôde e, ao inclinar-se para a
bacia, verificou que em vez do seu habitual cabelinho curto, pintado de ruivo,
tinha agora uma farta cabeleira castanha, levemente ondulada, que lhe chegava
ao meio das costas. Alucinada, abriu o armário do quarto onde, na véspera,
tinha pendurado a roupa. Mas em vez do tailleur
e blusa de seda que vestira para a palestra e dos jeans, t-shirt e blaser que reservara para viajar naquele dia,
estavam dois vestidos compridos, um de seda azul e outro branco, de cassa». In Rosa
Lobato Faria, As Esquinas do Tempo, Porto Editora, colecção Marca de Água, 2008, ISBN:
978-972-0-04181-4.
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