De profundis clamo ad te, domine
«(…) Morrem-lhe na garganta as palavras mais difíceis de dizer. Porque
... ? Acaba. E Afonso Madeira, num sopro: Sofrei que vo-lo diga e não
me queirais mal. É que, bem o sabeis, sendo infante, haveis jurado... Interrompe-o
um aaah prolongado, uma espécie de rugido.
Mas agora tem de terminar. Senhor, eles só temem pelo vosso nome, pela vossa boa
fama, pelo que as gentes possam pensar ou dizer de vossa mercê. O que as gentes
pensam ou dizem. Sim, nisso eles pensam. E eu, o agravo que sofri, o feito que esses dois fizeram? O
moço aproxima-se de Pedro, de modo a que este não perca uma única palavra sua. Entendei
que eles pouco sabem o que vos ferve na alma. Eu sei, sei que o vosso juramento
foi somente forçado pela paz do reino. Nem outra cousa podia ser, pelo vosso grande
amor a dona Inês, um amor que ainda vive como se ela viva fosse. Pedro, que se
virou para ele, abre-se num sorriso que é emoção e é ternura. Como tu me
conheces, Afonso. Só tu. A isto responde o escudeiro, dando ao rosto aquela expressão
de fragilidade e de inocência que o torna ainda mais jovem, que o faz tão
querido das mulheres e que, um dia, seduziu o Rei a ponto de o arrancar por
momentos ao perpétuo luto por Inês: É que vos tenho mais amor que os outros. E
haveis-me falado tanto de dona Inês que eu bem entendo que queirais lavar o seu
sangue. Sim, ele diz isto. Lá fora, pensa o jovem, Álvaro Pais há-de esperar de
olhos cravados na porta, que o ânimo do rei se altere por sua intercessão. Ele
entendeu, porém, que o mesmo será esperar ver um rio Correr para a nascente. Afonso
Madeira já não cuida mais dos desejos do chanceler. Fez o que pôde, disse o que
estava ao seu alcance. Agora, tem de seguir o rei no seu sonho, para não o
perder. Há nisto o seu interesse e também uma afeição sincera. Acima de tudo,
intuiu que no espírito e na alma de Pedro nada nem ninguém poderá dominar a
imagem de dona Inês. Acima dela estará hoje o reino, talvez, mas somente o
reino. Nenhum homem e nenhuma mulher. A voz de Pedro, ao responder-lhe,
interrompe-lhe o curso do pensamento.
Lavar o seu sangue?
Não, Afonso, não dizes bem. Tivesse eu recolhido o seu sangue, haveria de o
trazer comigo, encerrado em relicário santo. Até isso me foi negado. Mas se o não
posso ter, hei-de ao menos vingá-lo. É Pedro que se aproxima agora, lentamente,
enquanto fala. Que sabe o mundo de
juramentos, Afonso? O juramento que eu lhe fiz, a ela e não ao meu pai
e à minha mãe, o juramento que lhe fiz, só esse é verdadeiro e só esse conta e só
esse me prende. Afonso Madeira tenta desesperadamente afastar a imagem da
ausente, que enche e domina a sala e lhe rouba a atenção, o olhar de Pedro.
A imagem da morta é, bem o sabe, capaz de varrer todos os vivos para a sombra
do esquecimento. Afonso, murmura o rei, nunca houve nem haverá no mundo amor
como este. E o jovem, num último protesto: Por vezes, olho-vos e sinto receio.
Cuido que ela está aqui, entre nós, cuido que ainda a vedes. Justamente, Pedro
vê-a. Em sonhos e em sombras. O mundo em que vivo verdadeiramente, é
esta a ideia que lhe acode, o mundo em que vivo é só feito de sonho e de sombra
porque a luz, essa, roubaram-ma quando a mataram. A minha luz vinha dos seus
olhos. Sim, Pedro vê-a. Sempre. Por vezes, até nos rostos
graves dos seus conselheiros, mais vezes porém no rosto claro deste escudeiro,
a ponto de não saber já quem está na sua frente e foi essa confusão, foi essa
ilusão que um dia o levou a tomá-lo nos braços. Mas hoje não quer que isso
aconteça. Sacode a cabeça para afastar os dedos da sombra e ordena roucamente: Vai-te
agora, Afonso. Deixa-me só. O alaúde volta ao seu leito, na almadraquexa
que recobre uma grande arca. Afonso Madeira aí o deixa a repousar, antes de
sair». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997,
ISBN 972-41-1822-3.
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