terça-feira, 24 de março de 2015

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «Divertido e fascinante, claro; embora não saiba se vocês não correm o risco, sobretudo tu, de que a vida que Agnesse possa adquirir na tua memória seja à custa da tua…»

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«(…) Penso que foi nessa tarde que me revelou, por fim, os meandros dessa coisa entre Agnesse e tu, e confesso-te que ainda hoje, ao lembrar-me disso, se reproduz a minha estupefacção, mais do que surpresa, porque nunca teria esperado de um espírito como o de Claire, tão científico (apesar das suas escapadelas para o bosque da sua infância), uma tal invenção e uma história tão fora do sensato. É verdade que eu sou um meridional materialista, mas já falaremos disso; será que é necessariamente mentecapto aquele que faz chacota dessa ideia descabelada de Claire? Primeiro explicou-me sumariamente as relações de Agnesse com o tetravô poeta, apesar de ter acrescentado uma nota bibliográfica para que eu ampliasse o tema por minha conta, na medida em que Agnesse, precisamente por causa de tais relações, é hoje uma dessas pessoas que fazem despontar o seu perfil (o de Agnesse foi um tanto aquilino) nas páginas da história literária, afastado das biografias escandalosas, e suscitou, portanto, estudos em que é considerada independentemente da personagem de quem recebeu como oferta o direito a ser tida em conta. Depois referiu-me que, numa das cartas de Agnesse já publicadas (por quem e quando não vem ao caso), aparece uma frase reveladora de que sabia como, quando e por quem Napoleão tinha sido inventado, o que a transforma, de amante duradoura e de certo modo pesada do grande poeta autor das Erotic melodies, em testemunho inestimável de um facto histórico que, graças a Claire, o mundo inteiro terá de considerar agora à luz de certas descobertas incalculadas; por último, e isso foi a parte mais chocante, comunicou-me a sua convicção de que, semeando na tua memória tudo o que se sabe de Agnesse, de forma que com tudo isso se formasse uma espécie de molde ou forma da sua personalidade, ela viria habitá-lo, mais ou menos como as almas dos Egípcios habitam as suas efígies. Reconheço que semelhante invenção não é mais do que um ardil relativamente engenhoso e bastante culturalista para mascarar o seu propósito de te utilizar como uma médium qualquer, se bem que uma qualquer não, mas sim tu, e que tudo isso da personagem semeada ou enxertada no teu interior não é mais do que uma maneira de designar a preparação técnica a que te tem submetida, que inclui logicamente uma informação completa acerca da pessoa que te vai ocupar, que vai substituir a tua alma e falar com a tua língua.
Evidentemente, assim entende-se melhor, mas não é por isso que me convence. Pois ele espera, ou pelo menos disse-me isso, que através desse procedimento, e com a tua mediação, averiguará um dia o que pelos caminhos naturais, quer dizer, científicos, não consegue descobrir: quem inventou Napoleão, quando, porquê. Ele perguntá-lo-á a Agnesse, e tu responder-lhe-ás como uma pedrinha!, como uma mesa de pé-de-galo! Penso às vezes que tudo isto, no que a mim me diz respeito, não é mais do que uma brincadeira de Claire; no que a ti te concerne, uma forma de te ter apanhado por meios que não são os normais entre um homem e uma rapariga. Porque deve ser pelo menos divertido isso de semear na tua memória sementes de Agnesse para que o seu duplo cresça dentro de ti. Divertido e fascinante, claro; embora não saiba se vocês não correm o risco, sobretudo tu, de que a vida que Agnesse possa adquirir na tua memória seja à custa da tua, de maneira a que um dia o seu corpo vivo acabe por abrir caminho e sair para a luz a partir do teu corpo morto: lembra-te que operações dessas já lemos algumas, desde o maldito Poe até ao maldito Wilde. Se calhar já ocorreu essa ideia a Claire, a quem considero capaz de se entusiasmar com ela. Convém ter em conta, e é possível que o faças, que quando Claire me disse o que me disse, se encontrava já seriamente ameaçado, embora não soubesse ainda porquê, pois, apesar de o seu livro não ter sido ainda publicado (só o foi duas semanas depois, lembra-te), alguns cadernos de provas paginadas e com o texto definitivo tinham escapado da tipografia, tinham chegado a Harvard, e as pessoas insinuavam que Claire, reputado historiador e excelente professor, tinha alcançado por caminhos irrepreensíveis a condição de verdadeiro romancista, pois da utilização escrupulosa de documentações e fontes fidedignas extraía conclusões fantásticas e, sobretudo, divertidas: foi isso a primeira coisa que se disse acerca do seu livro, quando ainda era só conhecido às escondidas. Deves lembrar-te do dia em que o nosso presidente chamou Claire e lhe mostrou a carta recebida de um grupo de colegas conscienciosos e responsáveis, a fina flor dos historiadores de Nova Inglaterra, os quais vinham junto dele (do presidente) com a solicitação de que interpusesse a sua autoridade ou o seu poder para impedir ou complicar pelo menos a difusão de um livro que encherá de ridículo o seu autor, os amigos do autor, as universidades em que se formou, os professores com quem aprendeu, a instituição onde trabalha, os seus alunos e os possíveis leitores de semelhante calhamaço. Nós, quer dizer, tu e eu, esperávamos o regresso de Claire no seu próprio gabinete, entre os seus trastes estilo império, os seus retratos de Napoleão, o plano da batalha de Austerlitz nas suas fases principais, e aquela cópia a óleo que Rodney pintara da condessa de Lieven e que não sei por que raio está naquele conjunto: umas horas longas falando por falar e sem que nenhuma das conversas iniciadas desaguasse devidamente em colóquio. Sobrevinham silêncios, verdadeiros buracos de vazio que rompias com um grito, o ai! que o que estavas a imaginar te provocava, ou com uma pergunta reiterada até ao excesso. Caramba! Por muito que se goste de um homem, há sempre muito que se pode perguntar acerca dele, e não aquele invariável e igualmente modulado … tu achas que lhe vai acontecer alguma coisa?, com que alteravas ou interrompias o decurso das minhas conjecturas». ». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT