sábado, 28 de março de 2015

A Conquista de Lisboa. 1578 1583. Violência Militar. Comunidade Política. Rafael Valladares. «Quem sabe se a gloriosa entrada que Filipe II realizou em Lisboa, no ano de 1581, não projectou o sonho que quisera representar um dia em Bruxelas. O obstáculo, pelo contrário, chamava-se realidade…»

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Violência
A escolha de Alba
«(…) O duque parecia haver sido escolhido mais por motivos políticos do que por militares, na medida em que a sua famosa imagem de castelhano áspero, alto e de uma magreza elegante irradiava uma inflexibilidade e dureza que agora levavam a que se quisesse aproveitar dele para desbaratar a resistência lusa. A antipatia geral suscitada por Alba na Europa era aumentada por um matiz próprio no caso de Portugal, onde, segundo Conestaggio, era particularmente odiado e não o tinham por amigo da sua nação, devido à antiga rivalidade com Gomes Silva. Por isto, e por ser muito autoritário por natureza e pelos grandes e difíceis casos que lhe haviam passado pelas mãos, uma provável alusão à carnificina nos Países Baixos, houve quem pedisse a Filipe II que substituísse Alba. Neste ponto como em tantos outros, o historiador genovês estava bem informado. Para frei António Sousa, o povo português só aceitaria renunciar à prática da rebelião a que boa parte se entregava se o próprio rei se colocasse à frente do exército dos Habsburgos. Recordo a Vossa Majestade que, segundo todo o mundo diz, se Vossa Majestade tivesse ido à Flandres quando aqueles estados se começaram a revoltar, tudo se pacificaria rapidamente. E advertia: Os portugueses têm muita vantagem sobre os flamengos nestes pontos, de modo que, se passarem deles, tanto maior será aqui o mal do que ali. Deste modo, a indignidade que toda a sujeição comportava seria compensada em Portugal se a pessoa a quem se prestava obediência fosse o monarca. Em contrapartida, com Alba passar-se-ia o contrário, pois a opinião que os portugueses formularam de que não lhes é propenso, torná-los-á mais relutantes a deixarem-se submeter à razão.
O certo é que o duque gravidade, como o qualificou um pasquim de 1548, guardava na memória familiar recordações de uma relação com Portugal não tão definida como se pretendeu sustentar em 1580 e posteriormente. É verdade que existira um primeiro antepassado nobre morto durante o cerco de Lisboa em 1384, a apoiar a reivindicação de João I de Castela ao trono luso, embora o primeiro duque de Alba, Garcia Alvarez Toledo, se tenha vingado ao destacar-se particularmente na batalha de Toro, em 1476, que arruinou o sonho de Afonso V de Portugal de se tornar rei de Castela. Este acontecimento foi celebrado durante anos na propriedade que os Toledo possuíam em Alba de Tormes, próxima de Portugal. É de supor que tais festejos se tenham atenuado muito em 1543, quando o próprio Fernando foi padrinho na boda do futuro Filipe II e Maria de Portugal, que se realizou no palacete que os Toledo possuíam em La Abadía, na fronteira luso-castelhanas. Finalmente, o parentesco que o duque aduziu na sua correspondência com alguns nobres lusos em 1580 soava mais a oportunismo do que a uma expressão de afecto. Se ao conde de Tentúgal falou de Álvaro de Portugal, que é avô de nós dois, ao arcebispo de Évora, Teotónio Bragança, tratou de mobilizá-lo para a sua causa, pelo que os meus pais e eu devemos a esse reino que ê, afinal, a nossa pátria e a de toda a nobreza do nosso sangue.
Alba foi, portanto, escolhido deliberadamente como personagem pouco amiga dos portugueses e, sobretudo, graças à lenda de terror que ele próprio e outros haviam forjado relativamente à sua pessoa nos anos na Flandres. E também foi boa a [escolha] do duque de Alba, que tão necessário é para os efeitos da guerra o temor que têm ao duque, confessou um português dois meses antes de se iniciar a invasão. A sua missão era militar no que tocava a ocupar Portugal, e um pouco política quanto a vergar os considerados rebeldes. Fernando parece ter tido consciência disso, como quando, ao confrontar-se com as primeiras medidas de governo que teve de tomar na Lisboa recém-ocupada, incriminou Filipe II por ter sido enviado para aquela conquista sem qualquer homem da nação de quem receber conselho relativo a questões imediatas. Por anormal e até mesmo insensato que pareça, assim foi, pois esperava-se de Alba que, através da sua ligação epistolar directa com o monarca e os seus secretários, aceitasse consultar praticamente em tudo aqueles que haviam determinado monopolizar a política no círculo do rei.
A lenda de terror de justiceiro que Alba encarnava tinha a vantagem de que ninguém que estivesse minimamente informado acerca dos acontecimentos de alguns anos antes nos Países Baixos podia iludir-se quanto aos planos de Filipe II para Portugal. E vice-versa: apesar de apenas ter sido explorado o reforço constitucional que Madrid esperava obter com o seu triunfo entre os portugueses relativamente ao problema da Flandres, não é de descartar que a monarquia pensasse oferecer aos flamengos revoltados o exemplo da conquista graciosa de Portugal como um caso de compatibilidade entre o particularismo régio e a autoridade real, cuja capacidade magnânima para perdoar também abarcava os reinos conquistados. Quem sabe se a gloriosa entrada que Filipe II realizou em Lisboa, no ano de 1581, não projectou o sonho que quisera representar um dia em Bruxelas. O obstáculo, pelo contrário, chamava-se realidade, e esta apresentava-se como as tropas que apenas uns meses antes haviam trespassado o coração físico e mental dos seus novos súbditos. Travarem os príncipes guerras com os seus vassalos é coisa a que devem, enquanto lhes for possível, escusar-se, recordara Alba ao rei do seu posto na Flandres. O tópico desta doutrina intemporal adquiria um sentido renovado e inquietante quando se convertia num facto imediato e tangível, por mais que Filipe II e o seu governo se empenhassem em recordar o esforço negociador antes da invasão». In Rafael Valladares, A Conquista de Lisboa, 1578-1583, Violência Militar e Comunidade Política em Portugal, Texto Editores, Alfragide, 2010, ISBN 978-972-47-4111-6.

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