Violência
A
escolha de Alba
«(…)
O duque parecia haver sido escolhido mais por motivos políticos do que por
militares, na medida em que a sua famosa imagem de castelhano áspero, alto e de
uma magreza elegante irradiava uma inflexibilidade e dureza que agora levavam a
que se quisesse aproveitar dele para desbaratar a resistência lusa. A antipatia
geral suscitada por Alba na Europa era aumentada por um matiz próprio no caso de
Portugal, onde, segundo Conestaggio, era particularmente
odiado e não o tinham por amigo da
sua nação, devido à antiga rivalidade com Gomes Silva. Por isto, e por ser muito autoritário por natureza e pelos
grandes e difíceis casos que lhe haviam passado pelas mãos, uma provável alusão
à carnificina nos Países Baixos, houve quem pedisse a Filipe II que
substituísse Alba. Neste ponto como em tantos outros, o historiador genovês
estava bem informado. Para frei António Sousa, o povo português só aceitaria renunciar
à prática da rebelião a que boa parte se entregava se o próprio rei se colocasse
à frente do exército dos Habsburgos. Recordo
a Vossa Majestade que, segundo todo o mundo diz, se Vossa Majestade tivesse ido
à Flandres quando aqueles estados se começaram a revoltar, tudo se pacificaria
rapidamente. E advertia: Os
portugueses têm muita vantagem sobre os flamengos nestes pontos, de modo que,
se passarem deles, tanto maior será aqui o mal do que ali. Deste modo, a indignidade que toda a sujeição comportava
seria compensada em Portugal se a pessoa a quem se prestava obediência fosse o
monarca. Em contrapartida, com Alba passar-se-ia o contrário, pois a opinião que os portugueses formularam de que
não lhes é propenso, torná-los-á mais relutantes a deixarem-se submeter à razão.
O
certo é que o duque gravidade, como o qualificou um pasquim de 1548, guardava na memória familiar
recordações de uma relação com Portugal não tão definida como se pretendeu sustentar
em 1580 e posteriormente. É verdade
que existira um primeiro antepassado nobre morto durante o cerco de Lisboa em 1384, a apoiar a reivindicação de João
I de Castela ao trono luso, embora o primeiro duque de Alba, Garcia Alvarez Toledo,
se tenha vingado ao destacar-se particularmente na batalha de Toro, em 1476, que arruinou o sonho de Afonso V de
Portugal de se tornar rei de Castela. Este acontecimento foi celebrado durante
anos na propriedade que os Toledo possuíam em Alba de Tormes, próxima de
Portugal. É de supor que tais festejos se tenham atenuado muito em 1543, quando o próprio Fernando foi
padrinho na boda do futuro Filipe II e Maria de Portugal, que se realizou no
palacete que os Toledo possuíam em La Abadía, na fronteira luso-castelhanas.
Finalmente, o parentesco que o duque aduziu na sua correspondência com alguns
nobres lusos em 1580 soava mais a
oportunismo do que a uma expressão de afecto. Se ao conde de Tentúgal falou de
Álvaro de Portugal, que é avô de nós dois,
ao arcebispo de Évora, Teotónio Bragança, tratou de mobilizá-lo para a sua
causa, pelo que os meus pais e eu devemos
a esse reino que ê, afinal, a nossa pátria e a de toda a nobreza do nosso
sangue.
Alba
foi, portanto, escolhido deliberadamente como personagem pouco amiga dos
portugueses e, sobretudo, graças à lenda de terror que ele próprio e outros
haviam forjado relativamente à sua pessoa nos anos na Flandres. E também foi
boa a [escolha] do duque de Alba, que tão necessário é para os efeitos da
guerra o temor que têm ao duque, confessou um português dois meses antes de se
iniciar a invasão. A sua missão era militar no que tocava a ocupar Portugal, e
um pouco política quanto a vergar os considerados rebeldes. Fernando
parece ter tido consciência disso, como quando, ao confrontar-se com as
primeiras medidas de governo que teve de tomar na Lisboa recém-ocupada,
incriminou Filipe II por ter sido enviado para aquela conquista sem qualquer homem da nação de quem receber
conselho relativo a questões imediatas. Por anormal e até mesmo insensato que
pareça, assim foi, pois esperava-se de Alba que, através da sua ligação
epistolar directa com o monarca e os seus secretários, aceitasse consultar
praticamente em tudo aqueles que haviam determinado monopolizar a política no
círculo do rei.
A
lenda de terror de justiceiro que Alba encarnava tinha a vantagem de que
ninguém que estivesse minimamente informado acerca dos acontecimentos de alguns
anos antes nos Países Baixos podia iludir-se quanto aos planos de Filipe II
para Portugal. E vice-versa: apesar de apenas ter sido explorado o reforço
constitucional que Madrid esperava obter com o seu triunfo entre os portugueses
relativamente ao problema da Flandres, não é de descartar que a monarquia
pensasse oferecer aos flamengos revoltados o exemplo da conquista graciosa de Portugal como um caso de compatibilidade
entre o particularismo régio e a autoridade real, cuja capacidade magnânima para
perdoar também abarcava os reinos conquistados. Quem sabe se a gloriosa entrada
que Filipe II realizou em Lisboa, no ano de 1581, não projectou o sonho que quisera representar um dia em
Bruxelas. O obstáculo, pelo contrário, chamava-se realidade, e esta apresentava-se
como as tropas que apenas uns meses antes haviam trespassado o coração físico e
mental dos seus novos súbditos. Travarem
os príncipes guerras com os seus vassalos é coisa a que devem, enquanto lhes
for possível, escusar-se, recordara Alba ao rei do seu posto na Flandres. O
tópico desta doutrina intemporal adquiria um sentido renovado e inquietante
quando se convertia num facto imediato e tangível, por mais que Filipe II e o
seu governo se empenhassem em recordar o esforço negociador antes da invasão». In
Rafael Valladares, A Conquista de Lisboa, 1578-1583, Violência Militar e
Comunidade Política em Portugal, Texto Editores, Alfragide, 2010, ISBN
978-972-47-4111-6.
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