A
Madrinha
«(…) As pessoas saíram às ruas para me receber, ajoelhando-se e benzendo-se
à minha passagem, excepto os mais velhos e as crianças de colo, que me davam as
boas-vindas das varandas. Quando passei por baixo da pequena janela no meio do
arco que atravessava a rua, unindo as duas partes da casa, todos os que lá
viviam, desde o senhor até ao aprendiz de criado, interromperam o que estavam a
fazer para me prestar homenagem: não era todos os dias que uma santa de Lisboa percorria
meio Portugal para ir ao batizado de uma menina. Maria José, morgada de
Cavalleiros, senhora da Casa do Arco e mãe da minha afilhada, ficara
órfã aos seis anos e, provavelmente por se sentir só, por vontade do meu Filho,
ou porque a juventude a fazia prolífica, tivera uma criança quase todos os
verões desde que se casara, aos dezasseis anos, com o filho mais novo do
marquês de Marialva, Rodrigo Meneses, que contava dezanove anos no dia em que
se tornara seu marido.
Ambos
me esperavam na soleira da porta. Ele era um homem alto, de rosto anguloso e
nariz aquilino, com um porte que não deixava a ninguém dúvidas sobre o berço em
que nascera; mas descobri-lhe, por detrás do seu ar soberbo de filho de
Marialva, pelo cabelo preto que, insubordinado, saía da peruca, tendências para
o teatro e as grandes ideias. Ela era um pouco mais baixa, noutros tons, tudo
claro desde os olhos e a pele, que mal deixava ver num vestido demasiado sóbrio
para a idade, até ao cabelo; as formas eram redondas, bem torneadas, com qualquer
coisa de acolhedor nos braços que descansavam no regaço e um sentido do dever desenhado
no contorno da boca e do queixo. Não admira que se tivessem apaixonado depois
do casamento, como acontecia quando era feliz a escolha da família. No olhar de
cada um, um castanho-escuro de ave sonhadora, o dele um azul água de uma
transparência de regato, o dela, consegui ler as palavras que, por respeitarem
as regras da etiqueta, não disseram em voz alta: Que melhor madrinha
poderíamos ter escolhido para a nossa primeira filha? Devo reconhecer que
na altura concordei que ninguém poderia protegê-la tão bem como eu da doença,
da morte e de outras coisas funestas que espreitavam, vorazes, os berços dos
recém-nascidos. Mesmo enfaixada e enfiada num vestido que parecia engoli-la, Eugénia não deixava de ser uma
menina muito bonita e prometi velar por ela até se tornar mulher.
O
Baptismo
A cerimónia do baptismo teve a
solenidade necessária para estar à altura dos ilustres padrinhos, sem, no
entanto, fazer uso da pompa da corte, porque a sobriedade era uma das virtudes
de Maria José. A comida foi de tal abundância que alguns convidados olhavam com
inveja os cães, enfartados com os restos, a dormirem debaixo das mesas ou lá
fora, onde houvesse uma sombra. Dois dias e parte de uma noite foi o tempo que
demoraram os amigos vindos de vilas e cidades próximas a festejar a pureza da
alma da menina, limpa da carga milenar do pecado original. Duas noites e boa
parte dos dias os criados da casa não pararam de levar, trazer, lavar, cozinhar
e também comer, beber e rir com os serviçais dos vizinhos e alguns trabalhadores
das quintas que se lhes haviam juntado para os ajudar, como era costume em ocasiões
daquelas.
Ao terceiro dia, o andor voltou a
ser colocado no seu lugar dentro do coche que ia levar N. S.ª da Madre de Deus
de volta a Lisboa, de onde não voltaria a sair. Antes de partir, o pajem
Damasceno entregou como presente de despedida da madrinha uma réplica da santa
em prata do tamanho do dedo mindinho da afilhada, que Maria José prendeu aos
folhos bordados que forravam o berço e que mais tarde Eugénia levaria sempre
presa à roupa interior para que a protegesse das desgraças terrenas. Os pais,
de pé sob o arco, despediram-se da imagem e, mal os cavalos começaram a descer
a rua de Santa Maria, o céu encheu-se de nuvens escuras e uma chuva espessa, primaveril,
caiu de repente. A morgada da Casa do Arco teve um arrepio, porque algo
invisível lhe sussurrou ao ouvido: Coitada
da tua filha, que terrível destino! Não precisou de olhar em volta,
sabia que ninguém, mesmo ninguém, além do seu marido, se aproximara dela. Era
uma voz estranha, a voz premonitória, quase podia jurar que lhe faltava o som e
talvez nem fizesse sentido». In Cristina
Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-23-1047-3.
Cortesia
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