«Na década de noventa, depois de anos de
exílio na Alemanha, o poeta turco Ka volta a Istambul para o enterro da mãe. De
lá, segue para a remota Kars, na fronteira com a Geórgia, a pretexto de fazer
uma reportagem sobre uma onda de suicídios entre jovens islâmicas. Durante essa
visita, uma queda de neve bloqueia todas as estradas, isolando a cidade do
resto do mundo, e é nesse clima de isolamento que um veterano actor e a sua
mulher aproveitam para liderar um golpe militar. Embora tenha se distanciado da
política há muitos anos, Ka é alçado a protagonista involuntário dessa
revolução. Nada menos apropriado para o escritor cujo desejo, além de se casar
com İpek, antiga colega de escola que reencontrou em Kars, é apenas registar as
poesias que lhe escapam há anos, mas que agora passam a fluir com extrema
naturalidade. O confronto intransigente e muitas vezes sangrento dos islamitas
radicais com um estado que quer ser secular, a violência do aparelho
repressivo, o medo de que os radicais cheguem ao poder pela democracia e os
crimes cometidos pelos dois lados: é nesse turbilhão que Ka vaga por três dias,
tentando salvar-se a si mesmo e ao seu recém-descoberto amor por İpek. Enquanto
o poeta tenta se equilibrar entre as diversas facções em choque, vê a cidade tornar-se
um microcosmo dos conflitos raciais, políticos e étnicos da Turquia, além de
palco da sua tragédia pessoal. A acção de Neve se passa alguns anos após o golpe e a fatídica e brutal queda
de neve. Um amigo de Ka, obcecado por encontrar o seu caderno de poesias,
visita Kars a fim de refazer os passos do poeta e de entender as mudanças
radicais que aqueles três dias provocaram em sua vida. A grande habilidade de
Pamuk está em combinar um tema presente, actual, a relação entre islamismo e
política, com questões atemporais, que se manifestam nas inquietações
espirituais e artísticas de Ka. Ao expor as relações intrínsecas do motor
social com a subjectividade das suas engrenagens, são jornalistas,
políticos, terroristas, cidadãos, Pamuk criou um romance complexo,
multifacetado, numa visão original e arrebatadora da realidade, como só a
ficção permite».
O silêncio da neve A viagem para Kars
«O silêncio da neve, pensou o homem que estava sentado logo atrás
do motorista do autocarro. Se aquilo fosse o começo de um poema, poderia chamar
o que sentia no seu íntimo de o silêncio da neve. Tomara o autocarro de
Erzurum para Kars, com apenas alguns segundos de folga. Mal chegara à estação
rodoviária num autocarro vindo de Istambul, depois de dois dias de viagem, sob
tempestade e neve, e começara a andar para cima e para baixo nos corredores húmidos
e sujos arrastando a mala e procurando a sua ligação, quando alguém lhe disse
que o autocarro para Kars partiria imediatamente. Ele conseguiu encontrar o autocarro,
um velho Magirus, mas o motorista acabara de fechar a bagageira e, como estava com
pressa, recusou-se a abri-lo novamente. Assim, o nosso viajante foi obrigado a
entrar no autocarro com a bagagem. A grande mala vermelho-escura Bally estava
agora enfiada entre as suas pernas. Estava sentado perto da janela e trajava um
grosso casaco cor de carvão que comprara na Kaufhof, em Frankfurt, cinco anos
antes. É bom deixar claro, desde já, que aquele casaco macio e delicado seria
motivo de vergonha e inquietação para ele nos dias que passaria em Kars, ao
mesmo tempo que lhe proporcionaria uma sensação de segurança.
Assim que o autocarro
partiu, o nosso viajante grudou os olhos na janela; esperando talvez ver
alguma coisa nova, esquadrinhava as lojinhas, as padarias ordinárias e os cafés
arruinados que se alinhavam nas ruas dos subúrbios de Erzurum. E, enquanto
isso, começou a nevar. Era uma neve mais densa e pesada que a que vira cair
entre Istambul e Erzurum. Se não estivesse tão cansado e tivesse prestado
atenção aos flocos de neve que revoluteavam no céu como plumas, teria percebido
que avançava directamente para uma tempestade de neve; teria visto desde o
começo que estava embarcando numa viagem que iria mudar a sua vida para sempre
e teria voltado atrás. Mas esse pensamento nem sequer lhe passou pela cabeça.
Quando caiu a noite, ele se abandonou à luz que tardava no alto do céu; nos
flocos de neve que redemoinhavam ao vento ainda com mais fúria, ele não via o
anúncio de uma tempestade iminente mas antes uma promessa, um sinal indicando o
caminho de volta à felicidade e à pureza que conhecera em criança. O nosso
viajante passara os anos de
felicidade e infância em Istambul; voltara uma semana antes, pela primeira vez
em doze anos, para os funerais de sua mãe e, tendo lá permanecido durante
quatro dias, resolvera fazer essa viagem a Kars. Anos mais tarde ele ainda
haveria de rememorar a extraordinária beleza da neve naquela noite; a
felicidade que ela lhe proporcionou fora, de longe, muito maior que qualquer
outra que experimentara em Istambul. Era um poeta e, como ele próprio escrevera,
num de seus primeiros poemas, ainda desconhecido dos turcos, neva apenas uma vez em nossos sonhos.
Enquanto olhava a neve cair do lado de fora da janela, lenta e
silenciosamente como num sonho, o viajante mergulhou num devaneio havia muito
esperado e desejado; purificado pelas lembranças inocentes da infância, ele se
rendeu ao optimismo e ousou acreditar estar à vontade neste mundo. Logo depois
ele sentiu mais uma coisa que não sentia, fazia muito tempo e adormeceu no seu
banco. Vamos aproveitar essa calmaria para sussurrar alguns dados biográficos.
Embora tivesse passado os últimos doze anos em exílio político na Alemanha, o nosso
viajante nunca se envolvera muito com política. A sua verdadeira paixão, o seu
único pensamento, era a poesia. Tinha quarenta e dois anos, era solteiro, nunca
se tinha casado. Ele era alto para um turco, embora não fosse fácil perceber
isso vendo-o encolhido no seu banco; tinha cabelos castanhos e um rosto pálido,
que ficara ainda mais pálido durante a viagem. Era tímido e gostava de ficar
sozinho. Se pudesse imaginar o que iria acontecer tão logo adormecesse, com o
balanço do autocarro a sua cabeça iria descair primeiro sobre o ombro do homem
ao seu lado, depois em seu peito, ele se sentiria muito envergonhado. Pois o
viajante que estamos vendo recostado no passageiro ao seu lado é um homem
honesto e bem-intencionado, cheio de melancolia, como aqueles personagens de
Tchekhov tão cheios de virtudes, que não conseguem nada na vida. Teremos muito
a dizer sobre melancolia mais adiante. Mas como, ao que parece, ele não vai
ficar dormindo por muito mais tempo nessa posição incómoda, por agora basta
dizer que o nome do viajante é Kerim Alakuşoğlu, que ele não
gosta desse nome e prefere ser chamado de Ka (as suas iniciais)». In Orhan Pamuk, Kar,
2002, Neve, Nobel da Literatura, tradução de Luciano Machado, Companhia das
Letras, 2006, ISBN 853-590-922-2.
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