Uma
birra e uma fúria
«Esta
história começa com uma birra do Álvaro e com uma fúria do tio João. A birra do
Álvaro foi por causa do nosso cão, o Pelópidas, que ele queria por força levar
para o acampamento. Porque, para aquelas férias da Páscoa, a nossa escola tinha
planeado, om o Centro de Juventude de Vila Rica, um acampamento na zona de Chão
de Guerreiros e nós, a Catarina, o Frederico, o Álvaro e eu, estávamos
inscritos; e estávamos também entusiasmados com a ideia, porque era a primeira
vez que íamos acampar. Ora, na véspera da partida, quando nós e a nossa mãe
andávamos a fazer os preparativos, o meu querido mano percebeu, só então, que o
Pelópidas não podia ir connosco. Claro que eu também tinha pena de o deixar em
casa, mas sabia que não havia remédio: imaginem vocês a confusão se todo o
pessoal levasse animais para o acampamento. Só que o Álvaro, além de ser ainda
muito miúdo, é casmurro até dizer chega.
E fez uma cena das grandes: se o Pelópidas não vai, eu também não vou!,
anunciava ele, como se fosse uma ameaça gravíssima. E a nossa mãe, muito calma:
então é simples, vai só o Carlos. Podes começar a tirar a tua roupa do saco. Mas
ele vai sentir muito a minha falta! E por aqui fora, não vale a pena contar
tudo, mesmo porque o Álvaro teve de resignar-se. Já se vê que amuou; foi para o
quintal fazer festas ao cão e dizer-lhe que tinha muita pena, que eram só uns
dias e não sei que mais. Como se calcula, o Pelópidas ficou na mesma; só havia
de fazer, ele também, a grande cena no dia seguinte, quando nos visse abalar.
Entretanto, a nossa mãe disse-me: Carlos, eu acabo isto sozinha. Vai dar uma
volta com o teu irmão, a ver se ele areja as ideias e lhe passa o amuo, antes
que eu tenha de zangar-me.
Até
calhava bem, porque nós precisávamos de sair. Fui ter com o Álvaro e
lembrei-lhe de que tínhamos combinado procurar o tio João para nos despedirmos
e também para fazer-lhe uma pergunta. Não quero saber!, rezingou ele. Não quero
fazer pergunta nenhuma. Vou ficar aqui com o Pelópidas. Por fim, lá o convenci.
E convenci-o também a ir de bicicleta. Àquela hora, o tio devia estar no museu:
ele é, agora, director do museu de Vila Rica, que é muito perto da nossa casa,
são só dois ou três minutos a pé; mas eu queria ir de bicicleta, para depois
podermos dar um passeio que ajudasse a desfazer a birra do Álvaro. No museu,
tivemos uma desilusão. O tio João não estava lá e, segundo nos disse um dos funcionários,
não deveria aparecer tão cedo, porque tinha sido convidado para uma inauguração
no Centro Cultural. E o funcionário, que nos conhecia bem, acrescentou: mas se
querem mesmo falar com ele, podem ir ao Centro. A esta hora, já foram feitos os
discursos... Era uma boa ideia e ainda bem que tínhamos vindo de bicicleta,
assim não perdíamos tempo a ir a casa. Como seria de esperar, o Álvaro
protestou, rosnou que não gostava nada de inaugurações. Em vez de
responder-lhe, pedalei com mais força; ele acabou por calar-se e veio atrás de
mim. Em pouco tempo, chegámos ao Centro Cultural. O que lá fora inaugurado era
(segundo anunciava um cartaz na fachada) a Semana do Urbanismo, com palestras,
debates e coisas desse género, além de uma exposição. Não quero entrar!,
declarou o meu irmão, que continuava rabugento. Não sei o que é isso de
urbanismo e não quero ouvir palestras nem ver exposições! Repliquei-lhe que só
íamos ver e ouvir o tio João e entrei sem ligar aos seus protestos, de modo que
ele veio atrás de mim.
E
agora chegou a vez de contar o ataque de fúria do tio. Não precisámos de
perguntar por ele, encontrámo-lo facilmente. Logo à entrada, à nossa direita, a
porta que dava para o salão grande tinha um outro cartaz, por cima, dizendo: Exposição o Urbanismo na alvorada do
Século XXI. Essa porta estava aberta de par em par e pudemos avistar o
tio João, ao fundo, parado diante de uma maqueta. Fomos ter com ele. Já a
poucos metros de distância, o Álvaro chamou-o, mas não nos ouviu, pois não se
mexeu. Nem pareceu dar por nós quando chegámos ao pé dele. Tinha o olhar fixo
na maqueta, um olhar furioso, que parecia deitar chispas. Eu chamei outra vez: tio João...? E ele: nada!
Isto sempre a olhar para a maqueta. De modo que o Álvaro e eu também olhámos. A
bem dizer, não achei aquilo muito bonito, mas enfim, não percebo nada do
assunto: era a maqueta de um prédio muito grande, pintado de branco e de
azulão, cor-de-laranja e vermelho, bem berrantes. Na base via-se o nome do
arquitecto e uma frase: Projecto encomendado
por Picão & C! Finalmente, o tio João deu pela nossa presença: ide-vos
embora daqui, pobres infantes, que este horror indecente não é próprio para a
vossa tenra idade. Zarpai para ambientes mais saudáveis! Vocês já sabem como
ele fala, às vezes. O que eu percebi foi que não estava mal disposto nem
preocupado, pois nesse caso não falaria caro; mas, ao mesmo tempo, estava
zangado, disso não havia dúvida. Já percebi que o tio não gosta disto...,
repliquei. Mas também não é caso para... Ele interrompeu-me: é caso, sim
senhor. Porque esta organização maligna, este Picão & Companhia, é uma
firma de construção civil que anda a fazer horrores deste género por toda a
província, nas paisagens mais bonitas, mesmo na vizinhança de centros
históricos, em vilas e aldeias, sempre que consegue autorização das câmaras
municipais. Felizmente, há muitas câmaras que não deixam, mas há outras que
sim. Aquela torre enorme, aquele horror que foi construído em Contendas de
Cima, aqui bem perto de Vila Rica, foi o Picão que a fez. E, ainda por cima, eu
sei que..., mas não, isto não vos interessa. Vou-me embora daqui». In
João Aguiar e António J Gonçalves, O Acampamento Fantasma, O Bando dos Quatro, Edições
ASA, 2002, ISBN 978-972-413-031-6.
Cortesia
de ASA/JDACT