quinta-feira, 12 de março de 2015

Contos e Baladas. Os Meus Amores. Trindade Coelho. «… entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beiço superior, a tremer, e roubava-lh'o da mão. Pazes feitas! Era então rir a perder, n'umas casquinadas agudas, muito estridulas…»

jdact e wikipedia

Nota: De acordo com o original

«(…) Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a musica triste dos chocalhos. A ladrar, os cães faziam echo. O rebanho devia dormir profundamente, immerso no mesmo somno em que jazia prostrada toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum tempo, n'um ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga, se deixaram adormecer, quando a historia das moiras encantadas ia no seu melhor episodio... E lá no alto céo, mesmo sobre a cabana, a estrella da tarde não era nem mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa d'aquellas duas creanças... Quando ao repontar da manhã se levantaram, e sahiram a vêr o céo... Bonito dia, Gonçalo! Bonito dia, Rosaria! Olha..., na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando..., voando...»

Sultão Copiado do Natural
«Ao cair da tarde, o Thomé da Eira entrava em casa, cançado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no campo. Meus peccados, boa tarde!, dizia elle para a mulher, com um sorriso a affectar seriedade. Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a benção. Deus te abençoe. Pae, olhe que o Sultão..., ia a dizer o pequeno. Bem sei!, atalhava logo o Thomé. O Sultão é um maroto e tu és outro. E emquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bella navalha de meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons quinze annos, e abria a gaveta do pão, o Thomé punha-se a fazer de interesseiro comsigo mesmo, resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse: É que por este caminho não tenho um dia descançado... Nem uma hora... Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra. ...Pois vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim ha de chegar... A modos que vou já cançando... Mas o Thomé não era homem que dissesse estas coisas de coração. Pareciam-lhe longos, interminaveis, os aborrecidos domingos que passava sem ir campos fóra, madrugador como um melro. Uma aquella como outra qualquer!, dizia o bom do Thomé encolhendo os hombros, como quem está desgostoso com um genio assim. Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua cabrada, e veiu sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito á vontade.
Costume velho do Thomé: mal se sentava, mastigando o boccado, dizia logo para o filho: Ouves, Manuel? Bota cá fóra o Sultão. O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de contente, dizendo cá da rua: Sultão! Sae cá p'ra fóra, Sultão! No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento, orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza perpetua, n'um movimento moroso de palpebras pestanudas... E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas pernas delgadas, a olhar o Thomé que o chamava, um grande riso de alegria nas feições amorenadas, contente de ver o seu Sultão. Mas o pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em arreliar o Thomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de quadrupede de boa raça, alguem lhe poderia lêr no olhar, mole e impassivel, o frio, gelado despreso a que parecia votar o dono... Mas era áquillo mesmo que o bom do lavrador achava graça. E punha-se então a fallar muito serio, entre resignado e cortez, para o pequeno e desdenhoso jumento, o pão e o queijo esquecidos n'uma das mãos, na outra a navalha de meia-lua: Então, Sultão, não vens?
Não!, parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a envolvel-o no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia d'aquella immobilidade de estatua, apenas de quando  em quando uma pequenina patada na soleira, zap! Zangado, Sultão?, perguntava o lavrador. De mal comigo? E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir á vontade..., que não fosse vel-o o Sultão... Mettia entre dentes um pedacito de queijo, logo uma codea de pão, e fazendo umas grandes rugas na testa, de quem começa a zangar-se, voltava-se então muito serio: Ficas ahi, Sultão? Já não és meu amigo? O gerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que fazendo-se humilde... Então se és, anda d'ahi. Olha... E mostrava um pedacito de pão. P'ra ti se vieres... O Sultão dava tres passos, e ficava fóra do cortelho. E por se vingar, o Thomé carregava o semblante n'uma seriedade muito pesada, e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto, affirmando que já lhe não dava o pão. E desfechando-lhe emfim a ameaça de o vender a um cigano, entrava a tratal-o por senhor sôr Sultão...
Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar..., andando..., orelhas baixas, pescoço cahido, a modo de arrependido, parece que pedindo perdão da arrelia. Nervoso, sapateando, o Thomé voltava a cara para a outra banda, a rir como um perdido. Diabo do gerico! diabo do ratão! Capaz é elle de fazer rir as pedras, o mariola! E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na guela. No emtanto, o Sultão ia avançando, muito ronceiro, até que tocava com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Thomé sacudia-o: Sae-te p'ra lá!, dizia elle muito amuado, sem se voltar. Cuidas talvez que te não conheço, cuidas? Já te não quero, vae-te! Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer, chegava-lhe ao focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. Sultão lançava um olhar obliquo, entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beiço superior, a tremer, e roubava-lh'o da mão. Pazes feitas! Era então rir a perder, n'umas casquinadas agudas, muito estridulas. Credo, homem!, dizia de cima, da janella, a Josefa. Até pareces doido! Assim rouba o seu dono? Diga! Assim rouba o seu dono? Perguntava o Thomé, n'uns grandes gestos. Vamos que eu lhe não queria dar da merenda? Ladrão, de mais a mais!... Ora bem!, agora brinque. Era precisamente o que o Thomé queria: ver o Sultão a brincar». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de LAPereira/JDACT