Nota: De acordo com o
original
«(…) Pouco a pouco,
foi-se extinguindo no curral a musica triste dos chocalhos. A ladrar, os cães
faziam echo. O rebanho devia dormir profundamente, immerso no mesmo somno em
que jazia prostrada toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois
conversaram algum tempo, n'um ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos
da fadiga, se deixaram adormecer, quando a historia das moiras encantadas ia no
seu melhor episodio... E lá no alto céo, mesmo sobre a cabana, a estrella da
tarde não era nem mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa
d'aquellas duas creanças... Quando ao repontar da manhã se levantaram, e
sahiram a vêr o céo... Bonito dia, Gonçalo! Bonito dia, Rosaria! Olha..., na
calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando..., voando...»
Sultão Copiado do
Natural
«Ao cair da tarde, o
Thomé da Eira entrava em casa, cançado, esfalfado de andar um dia inteiro a
mourejar no campo. Meus peccados, boa tarde!, dizia elle para a mulher, com um
sorriso a affectar seriedade. Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas
pedindo-lhe a benção. Deus te abençoe. Pae, olhe que o Sultão..., ia a dizer o pequeno. Bem sei!, atalhava logo o
Thomé. O Sultão é um maroto e
tu és outro. E emquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bella navalha de meia-lua,
que lhe custara um pinto havia bons quinze annos, e abria a gaveta do pão, o
Thomé punha-se a fazer de interesseiro comsigo mesmo, resmungando alto p'ra que
a mulher o ouvisse: É que por este caminho não tenho um dia descançado... Nem
uma hora... Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra. ...Pois
vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim ha de chegar... A modos que vou já
cançando... Mas o Thomé não era homem que dissesse estas coisas de coração. Pareciam-lhe
longos, interminaveis, os aborrecidos domingos que passava sem ir campos fóra,
madrugador como um melro. Uma aquella como outra qualquer!, dizia o bom do
Thomé encolhendo os hombros, como quem está desgostoso com um genio assim. Partiu
uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua cabrada, e
veiu sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra que dava para a
rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito á vontade.
Costume velho do Thomé: mal
se sentava, mastigando o boccado,
dizia logo para o filho: Ouves, Manuel?
Bota cá fóra o Sultão. O
rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia nos gonzos
ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de contente, dizendo
cá da rua: Sultão! Sae cá p'ra
fóra, Sultão! No fundo negro
do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta baixa, destacava-se então
a cabecita parda de um jumento, orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza
perpetua, n'um movimento moroso de palpebras pestanudas... E ali se quedava
parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas pernas delgadas, a olhar o
Thomé que o chamava, um grande riso de alegria nas feições amorenadas, contente
de ver o seu Sultão. Mas o
pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em arreliar o Thomé,
fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de quadrupede de boa
raça, alguem lhe poderia lêr no olhar, mole e impassivel, o frio, gelado
despreso a que parecia votar o dono... Mas era áquillo mesmo que o bom do
lavrador achava graça. E punha-se então a fallar muito serio, entre resignado e
cortez, para o pequeno e desdenhoso jumento, o pão e o queijo esquecidos n'uma
das mãos, na outra a navalha de meia-lua: Então,
Sultão, não vens?
Não!, parecia
responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a envolvel-o no seu olhar profundo.
A quebrar a harmonia d'aquella immobilidade de estatua, apenas de quando em quando uma pequenina patada na soleira, zap!
Zangado, Sultão?, perguntava o
lavrador. De mal comigo? E
prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir á vontade..., que não
fosse vel-o o Sultão... Mettia
entre dentes um pedacito de queijo, logo uma codea de pão, e fazendo umas
grandes rugas na testa, de quem começa a zangar-se, voltava-se então muito
serio: Ficas ahi, Sultão? Já não és meu amigo? O gerico
abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que fazendo-se
humilde... Então se és, anda d'ahi. Olha... E mostrava um pedacito de pão. P'ra
ti se vieres... O Sultão dava
tres passos, e ficava fóra do cortelho. E por se vingar, o Thomé carregava o
semblante n'uma seriedade muito pesada, e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe
interesseiro, maroto, affirmando que já lhe não dava o pão. E desfechando-lhe
emfim a ameaça de o vender a um cigano, entrava
a tratal-o por senhor sôr Sultão...
Mas o pequeno jumento ia
andando muito devagar..., andando..., orelhas baixas, pescoço cahido, a modo de
arrependido, parece que pedindo perdão da arrelia. Nervoso, sapateando, o Thomé
voltava a cara para a outra banda, a rir como um perdido. Diabo do gerico!
diabo do ratão! Capaz é elle de fazer rir as pedras, o mariola! E
tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na guela. No emtanto, o Sultão ia avançando, muito
ronceiro, até que tocava com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O
Thomé sacudia-o: Sae-te p'ra lá!, dizia elle muito amuado, sem se voltar. Cuidas talvez que te não conheço, cuidas?
Já te não quero, vae-te! Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer,
chegava-lhe ao focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. Sultão lançava um olhar obliquo,
entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beiço superior, a
tremer, e roubava-lh'o da mão. Pazes feitas! Era então rir a perder,
n'umas casquinadas agudas, muito estridulas. Credo, homem!, dizia de cima, da janella, a Josefa. Até
pareces doido! Assim rouba o seu
dono? Diga! Assim rouba o seu
dono? Perguntava o Thomé, n'uns grandes gestos. Vamos que eu lhe não queria dar da merenda? Ladrão, de mais
a mais!... Ora bem!, agora brinque. Era precisamente o que o Thomé queria:
ver o Sultão a brincar». In
Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO
88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita
Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.
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