terça-feira, 17 de março de 2015

Um Meeting na Parvónia. Anónimo. «Dá-me influxo mordaz, horripilante, como outrora abrasou um Aretino, esse fogo infernal, que teve o Dante, ou a graça sequer de Tolentino; mas tu, oh! Musa reles, […] se me negas o dar-me engenho e arte, nem mais um decilitro hei de pagar-te»

Cortesia de wikipedia e jdact

Meeting
«Oh! Musa sacripanta dos Vardascas,
onzeneira, bulhenta, peralvilha,
bachante de bordéis, deusa de tascas,
de Momo e da Discórdia a vesga filha,
empresta-me o teu estro, põe-me em lascas,
regateira infernal, vil farroupilha,
a mente, e, qual fuzil na pederneira,
acende-ma com chama de fogueira.

Preciso de fatal inspiração,
não bebida na fonte de Hipocrene,
como o enfermo que em grave indigestão
carece vomitar, ou tomar séne.
Acode-me com o estro de febrão,
que delire em linguagem torpe, infrene.
Oh! Musa, qual Medeia ardendo em fúrias,
incita-me ás poéticas luxurias.

Dá-me influxo mordaz, horripilante,
como outrora abrasou um Aretino,
esse fogo infernal, que teve o Dante,
ou a graça sequer de Tolentino;
mas tu, oh! Musa reles, e farçante,
não me entregues o plectro de mofino;
se me negas o dar-me engenho e arte,
nem mais um decilitro hei de pagar-te.

E seja o canto meu feroz, medonho,
que semelhe ao uivar do voraz lobo,
ao crocitar dos corvos; enfadonho
como o sorrir alvar de informe bobo,
que a tratar o assumpto, que proponho,
requer-se petulância, e tal arroubo,
que o leitor, de liquido num desmaio,
me pareça assombrado pelo raio.


Num domingo de março, pela estrada
que de Arroios conduz á Panasqueira,
vão magotes de povo de ranchada
a provar o bom vinho, e a petisqueira
do louro peixe frito e da salada,
que na Perna de Pau a taberneira
lhes prepara; e com litros, comesanas,
de lá voltam com grandes carraspanas.

Já borbulham as árvores, e as flores
engrinaldam os prados de Flora;
as aves gorjeando os seus amores
alternam o chiar da triste nora.
Correm montes e vales caçadores
co'as matilhas de cães, mas em má hora,
que as pintadas perdizes e coelhos
levam ventos nas azas, nos artelhos.

O dia estava brusco, e os pardais
chilreiam festejando o equinócio
da vital primavera; nos currais
muge a vaca saudosa ao beneficio
da paveia; espirram os catarrais.
O povo é convidado p'ra um comício,
onde ávido concorre p'ra tratar
duma ideia, que ha muito anda no ar.

Boa gente de artistas, operários,
crestada pelas lavas do trabalho,
vivendo das migalhas dos salários
que do fisco escaparam; rebotalho
condenado a subir ásperos calvários,
que busca naipe ser no vil baralho,
donde querem tirar valetes, reis,
e trunfar com o direito só das leis».
[…]
Anónimo, 1881

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