«(…)
A senhora mirou o quadro e teve que se sentar, bebeu ela a minha água que a
Arminda trazia numa bandeja, valham-me os santos todos do céu, este aqui que o
senhor pintou é o meu falecido irmão e a noiva e os pais dela, não sei como é
que este quadro aparece na sua mão. E o Severino vá de lhe explicar e a
senhora, não diga isso, o meu irmão faleceu. Faleceu? Foi de
repente? É que ainda não há dois meses me quis comprar o quadro que eu
de cabeça pintei destas pessoas que lá passavam todas as tardes de carroça pelo
São Miguel, este São Miguel último, deu-me o cartão, por achar a moça parecida
com a defunta noiva. Não está a compreender, disse a senhora. O meu irmão tinha
uma paixão funesta por essa menina que era tísica e se chamava Isadora como a
bailarina, era uma adoração sem propósito, pois todos sabiam que ela ia morrer
ainda antes do ano virar. Isso percebi eu pela forma como ele ficou encantado
com o quadro, via-se que tinha uma recordação muito funda da menina Isadora. Não,
repetiu a senhora. Não me percebeu. O meu irmão faleceu mas não foi agora. Tirou
um lencinho da manga e assoou-se das lágrimas que lhe saíam do nariz e dos
olhos, o meu irmão suicidou-se assim que a noiva morreu, foram juntos a
enterrar fez vinte anos ainda não há dois meses. Ficámos tão gelados como a
água na bandeja, subimos para a motorizada e fugimos dali até hoje, nunca
encontrámos explicação para tal mistério, nem o Antunes era o Antunes, nem a
carroça era a carroça.
E
o quadro, tio Zebra., onde está o quadro, perguntou a Diamantina que já tinha
desentrapado as frieiras com o nervoso. O quadro ficou em cima do piano, ao
lado dos lírios, dos copos de água e da menina tísica com nome de bailarina. Como
é possível o Mário lembrar-se de tudo com tanto pormenor, sorriu Diamantina.
Que homem inacreditável, o Mário! Ficou um momento a contemplar na memória
aquele passado longínquo até que uma vaga de soluços a inundou e finalmente
conseguiu chorar. A Tiana pergunta se a dona Tininha quer um chá. Está quente e
ela fez o bolo de passas. Está bem, Júlia. Podes servir na salinha. Não era a
primeira vez que o bolo de passas ajudava a salvar situações, a apaziguar
consciências, a repor realidades, a ordenar sentimentos. Tiana tinha visto
Diamantina vaguear pela casa, perder o apetite, ter insónia, esquecer o
trabalho, tomar comprimidos, trocar as horas. Quando pressentiu o choro meteu o
bolo no forno. Os sapatos, Tininha?
São duros, tia. Calça as meias de lã e os sapatos, que são de carneira, logo se
fazem aos pés. Está bem, tia Margarida. Eu sei que lá na Beira andavas
descalça, mas aqui vais ter que te habituar. Não somos ricos mas somos alentejanos,
somos limpos, não pedimos esmola e não andamos descalços. Eu sei, tia.
A
Diamantina calçou-se e ensaiou uns passos vagarosos. Chamei-a cá fora e fi-la
esfregar as solas na terra saibrenta, para não escorregar. E não estraga? Não estraga. E se ainda ficarem
escorregadios, pedes ao tio Zebra que lhes deite pneu. O tio Zebra era tio da
minha mãe. Tinha chegado de África no ano em que eu nasci, com o casaco de pele
às riscas (era mais um colete com ombreiras que lhe chegavam acima do
cotovelo), dinheiros grandes e histórias extraordinárias. Mandou construir
aquela casa da nossa infância, em baixo cozinha e fumeiro, em cima três quartos
amplos e um sótão, por dentro madeiras, pedra e frescura, por fora cal e malvas
ao redor. Na frente acácias, olaias, cerejeiras, um pessegueiro que se cobria
de flor sem mais nem outra, zínias, sécias e roseiras bravas até ao caminho,
bordado, um sim, um não, de alfazema e alecrim. No Verão era ver as abelhas na
lida, a minha mãe nem podia fazer calda de açúcar para os sonhos sem fechar a
rede da janela e se o vento soprava de além, cheirava a mel. Atrás era a horta,
as couves, as cenouras, um bocadichinho para as batatas; e a salsa, os
coentros, os poejos do tempero e à mão de semear os tomatinhos, atados com fio
de esparto às gradinhas de cana. No meio árvores de fruto, macieiras,
figueiras, ameixoeiras e quatro laranjeiras que no tempo da flor cheiravam como
deve cheirar o paraíso. Depois, até ao horizonte, um mar de trigo, que não era
nosso, mas que monta, era lindo de ver, ainda mais quando para lá de Março lhe
nasciam centáureas e papoilas. Construída a casa, o tio Zebra investiu o
dinheiro que sobrou em mantas, primeiro alentejanas, depois de várias
proveniências e ia vendê-las pelas feiras e de porta em porta, pelas casas
ricas. Foi quando começou a colocar a sua mercadoria também em lares mais
modestos, que arrematou a um passarinheiro uma gaiola cheia de canários para
oferecer, na compra de duas mantas, às donas de casa mais sozinhas, em quem
adivinhava um fundo de tristeza. Era uma vez uma mulher bonita que vivia numa
casinha de janelas baixas, contava o tio Zebra. O marido tinha outra e
batia-lhe, embora ela passasse os dias a cuidar da roupa dele, da comida dele,
da casa dele. Um dia passou na rua um moço com uma gaiola e um canário e
ouvindo-a chorar, ali lho ofereceu para que se alegrasse. O passarinho cantava
tão bem, com tais escalas e requebros, que ela, por achá-lo tão capaz de fazer
crescer uma alegria semeada, lhe chamou Sol Nascente e o pendurou numa trave do
tecto, entre ramos de louro e réstias de cebola. Quando o marido chegou foi um
cabo de trabalhos, quem é que te deu o pássaro, foi um moço, mas queres fazer
de mim cabrão, posta à janela a aceitar oferendas de quem passa, não foi nada
disso, o moço ouviu-me chorar e teve pena, mais nada, e choravas de quê, meu
pedaço de pu… se não te falta aqui nada, agora hás-de fritar o sacana do
pássaro para o meu jantar, que o quero de cebolada. E batatas cozidas cortadas
em quartos e ao alto.
A
mulher subiu-se num banco e ao abrir a porta da gaiola disse ao Sol Nascente,
Arrepia já caminho direito à janela e ele assim fez, foi tão de repente que o
marido acreditou que era um acaso, mas não, já se sabe que não se pode cozinhar
um animal que tem nome». In Rosa Lobato de Faria, Os Pássaros de
Seda, licença editorial por cortesia de Asa Editores, Círculo de Leitores,
2002, ISBN 972-422-650-6.
Cortesia
de CLeitores/JDACT