domingo, 8 de março de 2015

De Volta a Istambul. A Bastarda de Istambul. Elif Shafak. «Como era surpreendente essa habilidade de realizar tanto realizando tão pouco, ir para casa de mãos vazias e ainda assim satisfeito no final do dia! Neste mundo, a serenidade gerava sorte e a sorte gerava felicidade…»

Cortesia de wikipedia

«Outrora havia; outrora não havia. As criaturas de Deus eram abundantes como grãos. E falar demais era um pecado...»

Canela
«(…) Felizmente para Zeliha, o motorista de um Toyota atrás do táxi perdeu a paciência e buzinou. Como se despertasse de um pesadelo, Zeliha recuperou o sangue-frio e estremeceu ante a desagradável situação. Sua tendência à violência a assustara, como sempre acontecia. Imediatamente ficou quieta e enveredou em outra direcção, tentando abrir caminho em meio ao grupo de pessoas que se amontoaram.

Na pressa, porém, o salto alto de seu sapato prendeu-se numa pedra solta do chão. Furiosa, Zeliha puxou o pé da poça sob a pedra. Enquanto pé e sapato se soltavam, o salto partiu-se, lembrando-a assim de uma regra que, em primeiro lugar, jamais deveria ter posto de lado. A Regra de Prata da Prudência para uma Mulher de Istambul: Quando assediada na rua, não perca o sangue-frio. A mulher que o perde em face do assédio e reage excessivamente só piorará as coisas para si mesma! O motorista de táxi riu, a buzina do Toyota estrondeou novamente, a chuva ficou mais forte e diversos pedestres emitiram muxoxos em uníssono, embora fosse difícil saber o que exactamente estavam censurando. Em meio ao tumulto, Zeliha vislumbrou um adesivo publicitário cintilando na parte de trás do carro: Não me Chame de Desgraçado! Desgraçados Também Têm Coração. Enquanto permanecia ali, fixando vaziamente aquelas palavras, sentiu-se cansada além de seus limites, tão exausta e aborrecida que não parecia estar lidando com os problemas diários enfrentados por uma mulher de Istambul. Era mais uma espécie de código cifrado que uma mente à distância destinara especificamente a ela, e cujo código Zeliha, na sua mortalidade, jamais conseguira decifrar.
O táxi e o Toyota não demoraram a partir, e os pedestres seguiram seus diferentes caminhos, deixando Zeliha segurando o salto quebrado do sapato de modo tão terno e desalentado como se carregasse um pássaro morto.
Bem, no universo caótico de Zeliha poderia haver pássaros mortos, mas certamente nenhuma ternura ou desalento. Ela não aceitaria nenhum dos dois. Endireitou-se e, ainda que desajeitadamente,
esforçou-se ao máximo para andar com um salto só. Logo corria por entre uma multidão com guarda-chuvas, expondo suas estonteantes pernas, claudicando pelo caminho como uma nota desafinada. Zeliha era um fio cor de alfazema, um tom que combinava muito mal numa tapeçaria de marrons, cinzas, e mais marrons e cinzas. Embora a cor que vestia fosse destoante, a multidão era cavernosa o suficiente para engolir a desarmonia dela e fazê-la voltar à cadência. A multidão não era uma aglomeração de centenas de respirações, suores e corpos doloridos, e sim uma única respiração, suor e corpo dolorido sob a chuva. Chuva ou sol faziam pouca diferença. Caminhar em Istambul significava andar atrelado à multidão.
Quando Zeliha passou por dúzias de pescadores de aparência grosseira, instalados silenciosamente lado a lado ao longo da velha ponte Gaiata, cada qual segurando um guarda-chuva numa das mãos e um molinete na outra, ela os invejou por sua capacidade 
de imobilidade, essa capacidade de esperar horas por um peixe que não existia, ou, se existia, revelava-se tão pequeno que no final só podia ser usado como isca para outro peixe que nunca seria pescado. Como era surpreendente essa habilidade de realizar tanto realizando tão pouco, ir para casa de mãos vazias e ainda assim satisfeito no final do dia! Neste mundo, a serenidade gerava sorte e a sorte gerava felicidade, ou assim suspeitava Zeliha. Suspeitar era tudo que podia fazer nessa questão em especial, pois jamais sentira o gosto daquela serenidade e achava que jamais poderia senti-lo. Pelo menos não hoje. Hoje definitivamente não. Apesar da sua pressa, serpenteando através do Grande Bazar, Zeliha diminuiu o passo. Não tinha tempo para fazer compras mas mesmo assim entraria para dar uma olhada rápida, assegurou-se enquanto examinava as vitrines. Acendeu um cigarro e, com a fumaça espiralando-se ao sair de sua boca, sentiu-se melhor, quase relaxada.
Uma mulher que fumava na rua não era bem vista em Istambul, mas quem se importava? Zeliha deu de ombros. Já não declarara guerra contra toda a sociedade? Com isso, andou em direcção à parte mais antiga do bazar. Havia vendedores ambulantes ali que a conheciam pelo primeiro nome, especialmente os joalheiros. Zeliha tinha um fraco por acessórios brilhantes de todos os tipos. Grampos de cristal, broches com imitações de diamantes, brincos cintilantes, enfeites de pérola para lapela, echarpes com listras de zebra, mochilas de cetim, xales de chiffon, pompons de seda, e sapatos, sempre de saltos altos. Nunca se passava um dia em que, atravessando o bazar, não entrasse em várias lojas e refilando com os vendedores, pagando no final bem menos que a quantia proposta por coisas que nem sequer planeara comprar. Mas naquele dia vagara por algumas lojas e espiara algumas montras. Só isso. Demorando-se em frente a um quiosque cheio de jarras, panelas e vidros com ervas e temperos de vários tipos e cores, lembrou que uma de suas irmãs lhe pedira de manhã que comprasse canela, embora não conseguisse lembrar quem fora. Zeliha era a mais jovem de quatro moças que não concordavam em nada, mas tinham a idêntica convicção de que estavam sempre certas e sentiam que não tinham nada a aprender umas com as outras, apenas muito a ensinar. Era tão ruim quanto perder na lotaria por um único número: de qualquer modo que considerasse a situação, não podia deixar de se sentir submetida a uma injustiça que estava além do castigo». In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.


Cortesia de EBF/JEditora/JDACT