«Outrora havia; outrora não havia. As criaturas de
Deus eram abundantes como grãos. E falar demais era um pecado...»
Canela
«(…) Felizmente para Zeliha, o motorista de um Toyota atrás do táxi
perdeu a paciência e buzinou. Como se despertasse de um pesadelo, Zeliha recuperou
o sangue-frio e estremeceu ante a desagradável situação. Sua tendência à
violência a assustara, como sempre acontecia. Imediatamente ficou quieta e
enveredou em outra direcção, tentando abrir caminho em meio ao grupo de pessoas
que se amontoaram.
Na pressa, porém, o salto alto de seu sapato
prendeu-se numa pedra solta do chão. Furiosa, Zeliha puxou o pé da poça sob a
pedra. Enquanto pé e sapato se soltavam, o salto partiu-se, lembrando-a assim
de uma regra que, em primeiro lugar, jamais deveria ter posto de lado. A
Regra de Prata da Prudência para uma Mulher de Istambul: Quando assediada
na rua, não perca o sangue-frio. A mulher que o perde em face do assédio e
reage excessivamente só piorará as coisas para si mesma! O motorista de táxi
riu, a buzina do Toyota estrondeou novamente, a chuva ficou mais forte e
diversos pedestres emitiram muxoxos em uníssono, embora fosse difícil saber o que exactamente
estavam censurando. Em meio ao tumulto, Zeliha vislumbrou um adesivo publicitário cintilando
na parte de trás do carro: Não me Chame
de Desgraçado! Desgraçados Também Têm Coração. Enquanto permanecia ali, fixando vaziamente aquelas
palavras, sentiu-se cansada além de seus limites, tão exausta e aborrecida que
não parecia estar lidando com os problemas diários enfrentados por uma mulher
de Istambul. Era mais uma espécie de código cifrado que uma
mente à distância destinara especificamente a ela, e cujo código Zeliha, na sua
mortalidade, jamais conseguira decifrar.
O táxi e o Toyota não demoraram a partir, e os
pedestres seguiram seus diferentes caminhos, deixando Zeliha segurando o salto
quebrado do sapato de modo tão terno e desalentado como se carregasse um
pássaro morto.
Bem, no universo caótico de Zeliha poderia haver
pássaros mortos, mas certamente nenhuma ternura ou desalento. Ela não aceitaria
nenhum dos dois. Endireitou-se e, ainda que desajeitadamente,
esforçou-se ao máximo para andar com um salto só.
Logo corria por entre uma multidão com guarda-chuvas, expondo suas estonteantes
pernas, claudicando pelo caminho como uma nota desafinada. Zeliha era um fio
cor de alfazema, um tom que combinava muito mal numa tapeçaria de
marrons, cinzas, e mais marrons e cinzas. Embora a cor que vestia fosse
destoante, a multidão era cavernosa o suficiente para engolir a desarmonia dela
e fazê-la voltar à cadência. A multidão não era uma aglomeração de centenas de
respirações, suores e corpos doloridos, e sim uma única respiração, suor e
corpo dolorido sob a chuva. Chuva ou sol faziam pouca diferença. Caminhar em
Istambul significava andar atrelado à multidão.
Quando Zeliha passou por dúzias de pescadores de
aparência grosseira, instalados silenciosamente lado a lado ao longo da velha ponte
Gaiata, cada qual segurando um guarda-chuva numa das mãos e um molinete na outra,
ela os invejou por sua capacidade
de imobilidade, essa capacidade de esperar horas
por um peixe que não existia, ou, se existia, revelava-se tão pequeno que no
final só podia ser usado como isca para outro peixe que nunca seria pescado. Como era surpreendente essa habilidade de realizar
tanto realizando tão pouco, ir para casa de mãos vazias e ainda assim
satisfeito no final do dia! Neste mundo, a serenidade gerava sorte e a sorte
gerava felicidade, ou assim suspeitava Zeliha. Suspeitar era tudo que podia fazer nessa questão em
especial, pois jamais sentira o gosto daquela serenidade e achava que jamais
poderia senti-lo. Pelo menos não hoje. Hoje definitivamente não. Apesar da
sua pressa, serpenteando através do Grande Bazar, Zeliha diminuiu o passo. Não
tinha tempo para fazer compras mas mesmo assim entraria para dar uma olhada rápida,
assegurou-se enquanto examinava as vitrines.
Acendeu um cigarro e, com a fumaça espiralando-se ao sair de sua boca,
sentiu-se melhor, quase relaxada.
Uma mulher que fumava na rua não era bem vista em
Istambul, mas quem se importava?
Zeliha deu de ombros. Já não declarara
guerra contra toda a sociedade? Com isso, andou em direcção à parte
mais antiga do bazar. Havia vendedores ambulantes ali que a conheciam pelo
primeiro nome, especialmente os joalheiros. Zeliha tinha um fraco por acessórios brilhantes de
todos os tipos. Grampos de cristal, broches com imitações de diamantes, brincos
cintilantes, enfeites de pérola para lapela, echarpes com listras de zebra, mochilas de cetim,
xales de chiffon, pompons de seda, e sapatos, sempre de saltos altos. Nunca se
passava um dia em que, atravessando o bazar, não entrasse em várias lojas e
refilando com os vendedores, pagando no final bem menos que a quantia proposta por
coisas que nem sequer planeara comprar. Mas naquele dia vagara por algumas lojas e espiara
algumas montras. Só isso. Demorando-se em frente a um quiosque cheio de jarras,
panelas e vidros com ervas e temperos de vários tipos e cores, lembrou que uma
de suas irmãs lhe pedira de manhã que comprasse canela, embora não conseguisse lembrar
quem fora. Zeliha era a mais jovem de quatro moças que não concordavam
em nada, mas tinham a idêntica convicção de que estavam sempre certas e sentiam
que não tinham nada a aprender umas com as outras, apenas muito a ensinar. Era
tão ruim quanto perder na lotaria por um único número: de qualquer modo que
considerasse a situação, não podia deixar de se sentir submetida a uma
injustiça que estava além do castigo». In Elif Shafak, De Volta a
Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de
Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN
978-989-875-237-6.
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