terça-feira, 24 de março de 2015

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «O pobre Ferdinando Luís, tonto como era! Pois, até nem o fazia nada mal, apesar de ser tonto. Como podia ele fazer alguma coisa mal, se não fazia nada...?»

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«(…) Quanto teria gostado de ver como me marcariam rendez-vous estes animaizinhos debaixo de alguma bétula milenária! Mas, quando o expediente burocrático se encontrava a meio dos seus trâmites, Carlos Frederico Guilherme lembrou-se de me destronar e, se eu perdi a ocasião de senhorear uns quantos plantígrados inofensivos, os guardas florestais sentiram-se muito defraudados nos seus desejos de me ter como colega e de almoçar comigo, pelo menos uma vez por ano. Talvez se tenham consolado com a esperança, não de todo impossível, de virem a almoçar com o meu primo, que se proclamou a si mesmo guarda-mor florestal sem necessidade de trâmites. Não espero que nenhum destes acontecimentos passe à História mas, a definição que deu de mim o tão citado vencedor (a quem, a partir de certa página, chamarei, de preferência, a Águia do Leste), por se ter infiltrado nos meios diplomáticos de toda a Europa e pelo facto de o texto da carta figurar, tanto nos comunicados confidenciais, como nos arquivos da coroa, o cognome de tonto é do domínio comum e não haverá já quem se atreva a arrebatar-mo. Nem destronado o perdi. É certo que, no dia em que me expulsaram da minha casa e me acolheu no seu reino o meu bom vizinho Christian, este último, depois de me dar as boas-vindas e um abraço, disse-me, em confiança: Tu não és tonto como dizem, pois não Ferdinando?, mas eu pedi-lhe que guardasse segredo e ele, não só ficou silencioso a esse respeito, como continua a chamar-me tonto quando eu não estou presente. Christian comporta-se como um amigo leal; devo-lhe o meu pão e a terra que piso, a liberdade com que me movo e a anonimia em que me permite viver: Christian tem a suprema galanteria de não contar comigo para nada, evitando-me, assim, o tão penoso papel dos príncipes destronados nas cortes caritativas. O pobre Ferdinando Luís, tonto como era! Pois, até nem o fazia nada mal, apesar de ser tonto. Como podia ele fazer alguma coisa mal, se não fazia nada...? Não seja injusta, minha senhora. Fez pelo menos duas filhas. Acredita que sim, marquês? Duvida-se que a segunda seja dele. … Ah, sim? Não me diga! Há quem pense que é de Lizst, o músico, mas todos julgam que é de Bismark. Bismark! Mas, sobre isto, ainda não há nada escrito. As crianças das escolas daquele que foi o meu país estudam História em livros onde sou referido (sempre em notas de pé de página) como Ferdinando Luís, O Tonto, sem referências à minha vida privada e, como tal, sou dado como morto. Mas, como o meu pais já não é sequer um país, mas sim uma parte esquecida do país do meu primo, os livros de História do ensino obrigatório são elaborados na longínqua Corte Imperial, a mais imperial de todas as cortes do mundo, incluindo a de Tombuctu e, os súbditos dessa extremidade do mundo não têm nada a dizer: por alguma razão não somos mais do que uma Finisterra, isso que, noutros tempos, era ser alguma coisa, pelo facto de ter tão à mão o Mistério mas, hoje, se nos conhecem, é pelo nome de um cabo: o Mistério caiu em desuso. Chamam-me O Tonto? Está bem, e depois? Não fiz outra coisa na vida (não convém exagerar na minha vida fiz um pouco mais do que isso) a não ser organizar e preparar a difusão, entre os que representam a opinião de todos, desse embuste tão cómodo como é a minha tolice. O facto de ser assim chamado nos livros de História, por muito que os seus textos sejam elaborados com as piores intenções pelos esbirros intelectuais do meu primo, constitui o meu triunfo: secreto, mas de íntimas satisfações. Não sei porquê, parece-me que vou ter que contar várias vezes a história do meu destronamento, ainda que, espero, de modo diferente de cada uma delas; quero dizer, as mesmas coisas com distintas palavras e a partir de pontos de vista variados; se calhar ainda me engano, porque não tenho muito claro aquilo que vou contar. Na realidade, neste caderno não se encerra senão a recordação, um tanto arrevesada, do meu destronamento, ainda que esse não seja o facto mais importante dentre os que aqui se contam e, sim, o seu pretexto e a sua trama. Mas convém não esquecer que o narrador sou eu, e que conto como me apetece: ainda que isso não tenha importância, às vezes gosto de fazer crer que sou aquilo a que se chama uma personagem histórica ou de me dar ares disso, ainda que das de menor vulto, muito abaixo dos imperadores. Não é possível desempenhar um papel suficientemente digno quando nos encontramos, pelo nascimento, em categorias tão intermédias e estou até persuadido de que semelhante papel não só se pode como se deve fazer: mesmo que isso acarrete consigo o risco de o representar com dignidade idêntica e a mesma solenidade que os verdadeiros protagonistas da História e que, inclusivamente, possa acontecer que o secundário supere o principal nesses matizes de estilo: tenho visto cada príncipe consorte...! O meu primo Carlos Frederico Guilherme passeia pela Europa com todas as plumas que o seu capacete de guerreiro pode suportar para se sentir alto; uma vez fotografámo-nos juntos e eu excedia-o nas plumas e na distinção». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT