O silêncio da neve A viagem para Kars
«(…) Ainda nos tempos de escola, nosso herói insistia em se
assinar como Ka nas suas tarefas e provas; ele
assinou Ka nos formulários de inscrição da universidade e aproveitava
todas as oportunidades para defender o seu direito de continuar a fazê-lo,
ainda que isso implicasse conflito com professores e funcionários públicos. A mãe,
a sua família e os seus amigos o chamavam de Ka e, tendo também
publicado uma colectânea de poesias sob esse nome, gozava de uma pequena fama
enigmática como Ka, tanto na Turquia como nos círculos turcos da Alemanha. Isso
é tudo o que posso adiantar por enquanto. Como o motorista do autocarro desejou
aos passageiros uma boa viagem quando partimos da estação rodoviária de
Erzurum, permitam-me acrescentar apenas estas palavras: Que a sua estrada esteja aberta, meu caro Ka. Mas não quero
enganá-los. Sou um velho amigo de Ka e começo esta história sabendo tudo o que
vai acontecer com ele em Kars. Depois de deixar Horasan, o autocarro rumou para
o norte, indo directamente para Kars. Enquanto subia pela pista tortuosa, o
motorista teve de pisar com força no travão para evitar chocar-se contra um
cavalo que surgira do nada, puxando uma carroça, numa das curvas fechadas, e Ka
acordou. O medo já havia criado um forte sentimento de solidariedade entre os
passageiros, e não demorou muito para Ka sentir-se um deles. Embora estivesse
sentado logo atrás do motorista, Ka logo estava agindo exactamente como os passageiros
atrás dele: toda vez que o autocarro diminuía a velocidade para fazer uma curva
ou evitar cair num precipício, ele se levantava para ver melhor; quando o
passageiro diligente que se dispusera a ajudar o motorista limpando a
condensação do pára-brisa deixava de limpar uma área do vidro, Ka a apontava
com o indicador (colaboração que passava despercebida), e quando a tempestade ficou
tão forte que as escovas já não conseguiam impedir que a neve se acumulasse
sobre o pára-brisa, Ka juntou-se ao motorista para tentar adivinhar o caminho.
Era impossível ler as placas rodoviárias, que estavam cobertas de
neve. Quando a tempestade de neve começou a mostrar a sua fúria, o motorista
desligou o farol alto e diminuiu as luzes dentro do autocarro, na esperança de
fazer a estrada surgir da penumbra. Os passageiros caíram num silêncio apreensivo,
olhos fitos na cena lá fora: a neve
cobrindo as ruas das aldeias pobres, as casas periclitantes de um só pavimento,
parcamente iluminadas, as estradas para aldeias mais distantes, já fechadas, e
as ravinas que mal se podiam ver para além das luzes dos postes. Quando
falavam, era num murmúrio. Assim, foi quase cochichando que o passageiro ao
lado de Ka, o homem em cujo ombro Ka adormecera pouco antes, perguntou-lhe por
que estava indo para Kars. Era fácil perceber que Ka não era do lugar. Sou jornalista, respondeu Ka
baixinho. O que era mentira. Estou
interessado nas eleições municipais, e também nas jovens que se suicidaram.
Isso era verdade. Quando o autarca de Kars foi assassinado, todos os
jornais de Istambul deram a notícia, respondeu o vizinho de Ka. E tem sido a
mesma coisa com as mulheres que estão suicidando-se. Ka não saberia dizer se o
tom de voz do homem deixava transparecer orgulho ou vergonha. Três dias depois,
parado na neve que cobria a avenida Halitpaşa, com lágrimas nos olhos, Ka veria novamente aquela aldeão
delgado.
Durante a conversa sem rumo certo que se seguiu pelo resto da
viagem de autocarro, Ka ficou sabendo que o homem acabara de levar a mãe para
Erzurum porque o hospital de Kars não era muito bom, que revendia animais de
granja nas aldeias próximas de Kars, que enfrentara muitas dificuldades mas não
se tornara um rebelde, e que por motivos misteriosos que não revelou a Ka,
lamentava não a própria sorte mas a do seu país e estava feliz em ver que um
homem culto, um cavalheiro como Ka se dera ao trabalho de viajar de Istambul
para se inteirar dos problemas da cidade. Havia uma tal nobreza na simplicidade
da sua fala e no orgulho que exibia, que Ka sentiu respeito por ele. A própria
presença dele inspirava calma. Nem uma vez nos doze anos de Alemanha, Ka
sentira tanta paz interior; fazia muito tempo que tivera o prazer fugaz de
experimentar empatia com alguém mais fraco que ele. Ele se lembrou de ter
tentado ver o mundo pelos olhos de um homem capaz de sentir amor, simpatia e
ternura. Ao fazer a mesma coisa naquele momento, já não sentia tanto medo da tempestade
incessante. Sabia que não estavam destinados a cair num abismo. O autocarro
iria atrasar-se, mas chegaria ao destino.
Quando, às dez horas da noite, três horas depois do previsto, o autocarro
começou a avançar lentamente pelas ruas cobertas de neve de Kars, Ka
não reconheceu a cidade de modo algum. Ele nem ao menos viu a estação ferroviária,
aonde ele chegara vinte anos antes numa maria-fumaça, nem tampouco qualquer
sinal do hotel para o qual o motorista o levara naquele dia (depois de
percorrer toda a cidade): o Hotel República, um telefone em cada quarto. Era como se tudo tivesse sido apagado,
estivesse perdido sob a neve. Ele teve um vislumbre dos velhos tempos nas
charretes ali e acolá, esperando em garagens, mas a cidade parecia muito mais
pobre e mais triste que aquela de que ele se lembrava. Pelas janelas geladas do
autocarro, Ka viu os mesmos prédios de apartamentos de concreto que se tinham
multiplicado por toda a Turquia nos últimos dez anos, os mesmos painéis de
Plexiglas; viu também faixas com slogans
da campanha eleitoral penduradas em todas as ruas». In Orhan Pamuk,
Kar, 2002, Neve, Nobel da Literatura, tradução de Luciano Machado, Companhia
das Letras, 2006, ISBN 853-590-922-2.
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