Os mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com
que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo.
Oriente e mitologia dos Descobrimentos. De João de Barros a Bocage
Descobrimentos. Classicismo e Mito do Longínquo. João de Barros
«(…) Todavia, marcado
como foi pelas ideias estrangeiradas,
acabou perseguido pela Inquisição (maldita),
vindo a ser preso, em 1571, e
morrendo na prisão, como diz ainda Nemésio coberto de usagre e de sarna ele,
que na Polónia e em Anvers se agasalhava com martas zibelinas! Numa ainda
que breve análise da personalidade e da obra de Damião de Góis, vemos que o seu
cosmopolitismo, além de se integrar, certamente mais do que o de qualquer outra
personalidade portuguesa da época, no conjunto do movimento humanista europeu, o
levou a interessar-se concretamente por civilizações não ocidentais. Concretamente
significa aqui conhecer in loco, viajando. Pode dizer-se que Damião
de Góis fez da viagem em si uma forma de acção humanista. Não tendo sido nem um
grande escritor nem um grande historiador, apesar da exemplaridade documental patente
nas Crónicas do Felicíssimo Rei D. Manuel (1566-1567) e Crónica
do Príncipe D. João (1567), Damião de Góis é, no entanto,
uma figura de relevo universal. Marcel Bataillon nota muito justamente que
Damião de Góis, tendo aprendido o latim apenas aos trinta e tal anos e nunca
chegando a atingir um alto nível em cultura clássica e na arte refinada do
manejo da retórica ciceroniana, teve todavia uma elevada importância espiritual:
Il ne nous déplaît pas que la gloire cosmopolite de Damião de Góis soit
soumise à un méfiant examen. Personne jusqu’à ce jour n’a songé à faire de lui
un brillant écrivain, ni en latin ni en portugais. Un des hommes qui ont le plus assidûment fréquenté
ses chroniques reconnaît en lui, avec de mediocre dons littéraires, un grand
esprit et un historien scrupuleux. Sans doute son importance spirituelle
réside-t-elle dans son cosmopolitisme même, dans les liens qu’il a su nouer
entre le Portugal des grandes découvertes et l’Europe de l’humanisme, de la
Renaissance et de la Réforme. O contraste com João Barros é flagrante e
serve-nos para melhor situar a obra e a personalidade deste relativamente ao
que nos interessa mais particularmente neste ensaio, ou seja, a visão literária
portuguesa do Oriente a partir da cultura clássica renascentista.
Note-se, antes de mais,
que, apesar do seu cosmopolitismo evidente, Damião de Góis só se interessa pelo
Oriente de maneira episódica. Pelo contrário, João Barros concentra na evocação
da descoberta e conquista e na descrição minuciosa de terras orientais o
essencial quer da sua pesquisa de historiador quer da sua arte clássica. Porquê? Sobretudo porque, creio,
a sua atitude é, ao contrário da de Damião de Góis, a atitude de um humanista,
digamos, estático, um humanista que, não viajando, ou viajando muito
pouco, substitui o conhecimento in loco por uma elaborada retórica
clássica evocativa do longínquo, um longínquo que acaba forçosamente por ganhar
proporções míticas. É o que estudaremos a seguir. Mas primeiro evoquemos
esquematicamente a vida e a obra e João Barros para mais facilmente
compreendermos esta sua atitude. Nascido cerca de 1496, provavelmente em Viseu, João Barros morreu a 20 de
Outubro de 1570 em Pombal. O seu
biógrafo mais completo, Severim Faria, diz-nos que desde a idade do jogo do pião João Barros começou a servir no paço
real de Manuel I, ali tendo aprendido as chamadas humanidades e sendo nomeado moço da guarda-roupa» do filho
primogénito de Manuel I, o futuro João III, cognominado o Piedoso. Escreve Severim Faria: … despachou el rei-rei D. João
III, neste princípio de seu governo, alguns criados que o tinham servido
sendo príncipe, entre eles foi dos primeiros João de Barros, que havia pouco que
casara em Leiria, e deu-lhe a capitania da Mina, a qual naquele tempo ainda que
rendia mais aos reis, não era de tanto proveito aos capitães, como depois foi.
Na verdade, não se sabe ao certo se João Barros teve a situação oficial
aludida, como refere António Baião na introdução à edição das Décadas.
Sabe-se, no entanto, que fez em 1518
uma viagem a S. Jorge da Mina, na costa da Guiné, e que em 1525 foi nomeado tesoureiro
do dinheiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta, chegando a ser feitor da mesma
(1532 ou 1533-1567), fixando-se
em Lisboa. É nesta cidade, portanto, que João Barros vai recolher os elementos
necessários para a composição das suas Décadas após ter publicado a Crónica
do Imperador Clarimundo em 1522 e
em 1532 uma obra intitulada Ropica
Pnefma (título grego que significa Mercadoria Espiritual), obra que
é um tratado de alegorias pondo a dialogar a Vontade, a Razão, o Tempo, o
Vício, etc. Além disso, João Barros publicara obras de carácter pedagógico
e gramatical, de entre as quais se destacam: Cartinha com os preceitos e
mandamentos da Santa Madre Igreja (1539), Gramática da
Língua Portuguesa, seguida de Diálogo em louvor da nossa
linguagem (1540) e Diálogo da Viciosa Vergonha (1540).
Nestas obras, de carácter pedagógico, revela-se já plenamente o humanista seguidor
de Lorenzo Valla e de António de Nebrija, na esteira do Erasmo. E delas
podemos partir para avaliar o que na própria visão mítica e imperialista das terras
longínquas descobertas e conquistadas pelos portugueses se deve à preocupação
pedagógica e à intenção de seguir modelos clássicos adaptando-os ao nacionalismo
linguístico. Assim, o historiador torna-se sobretudo um estilista atento às nuances
da língua portuguesa, como muito bem nota Maria Leonor Buescu,
apresentando um exemplo relativo ao Oriente que nos interessa muito especialmente:
…a obra histórica, de conceito discutível, de objectivos definidos e
compromissos visíveis, aparece numa nova perspectiva ao observar-se que Barros
muitas vezes se esquece da História para se embrenhar em reflexões gramaticais
e linguísticas de inegável interesse. Mais do que historiador, o Barros das Décadas
é um cripto-gramático que esboça de maneira audaciosa o que poderíamos
chamar uma gramática comparativa nascente, não hesitando mesmo em
servir-se de uma terminologia especificamente gramatical: Segundo a geral opinião daqueles que sabiam
os princípios deste sabaia, ele era natural da Pérsia, de ũa cidade per nome
Sabá ou Savá, porque per um modo e por outro nomeam os párseos, os quaes, quando
formam nomes patronímicos dizem de
Sabá, sabaí, de Fars, pola Pérsia, farsí, e de Armen, por Arménia, armeni e per este modo formam todolos outros». In
Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa, Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve, Conselho da
Europa, Lisboa, 1983.
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