quarta-feira, 18 de março de 2015

Todos os Nomes. José Saramago. «A contínua agitação dos oito da frente, que tão depressa se sentam como se levantam, sempre às corridas da mesa para o balcão, do balcão para os ficheiros, dos ficheiros para o arquivo, repetindo sem descanso…»

jdact

«Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens»

Livro das Evidências
«Por cima da moldura da porta há uma chapa metálica comprida e estreita, revestida de esmalte. Sobre um fundo branco, as letras negras dizem Conservatória Geral do Registo Civil. O esmalte está rachado e esboicelado em alguns pontos. A porta é antiga, a última camada de pintura castanha está a descascar-se, os veios da madeira, à vista, lembram uma pele estriada. Há cinco janelas na fachada. Mal se cruza o limiar, sente-se o cheiro do papel velho. É certo que não passa um dia sem que entrem papéis novos na Conservatória, dos indivíduos de sexo masculino e de sexo feminino que lá fora vão nascendo, mas o cheiro nunca chega a mudar, em primeiro lugar porque o destino de todo o papel novo, logo à saída da fábrica, é começar a envelhecer, em segundo lugar porque, mais habitualmente no papel velho, mas muitas vezes no papel novo, não passa um dia sem que se escrevam causas de falecimentos e respectivos locais e datas, cada um contribuindo com os seus cheiros próprios, nem sempre ofensivos das mucosas olfactivas, como o demonstram certos eflúvios aromáticos que de vez em quando, subtilmente, perpassam na atmosfera da Conservatória Geral e que os narizes mais finos identificam como um perfume composto de metade rosa e metade crisântemo.
Logo depois da porta aparece um alto guarda-vento envidraçado de dois batentes por onde se acede à enorme sala rectangular onde os funcionários trabalham, separados do público por um balcão comprido que une as duas paredes laterais, com excepção, em uma das extremidades, da aba móvel que permite a passagem para o interior. A disposição dos lugares na sala acata naturalmente as precedências hierárquicas, mas sendo, como se esperaria, harmoniosa deste ponto de vista, também o é do ponto de vista geométrico, o que serve para provar que não existe nenhuma insanável contradição entre estética e autoridade. A primeira linha de mesas, paralela ao balcão, é ocupada pelos oito auxiliares de escrita a quem compete atender o público. Atrás dela, igualmente centrada em relação ao eixo mediano que, partindo da porta, se perde lá ao fundo, nos confins escuros do edifício, há uma linha de quatro mesas. Estas pertencem aos oficiais. A seguir a eles vêem-se os subchefes, e estes são dois. Finalmente, isolado, sozinho, como tinha de ser, o conservador, a quem chamam chefe no trato quotidiano.
A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca. A contínua agitação dos oito da frente, que tão depressa se sentam como se levantam, sempre às corridas da mesa para o balcão, do balcão para os ficheiros, dos ficheiros para o arquivo, repetindo sem descanso estas e outras sequências e combinações perante a indiferença dos superiores, tanto imediatos como afastados, é um factor indispensável para a compreensão de como foram possíveis e lamentavelmente fáceis de cometer os abusos, as irregularidades e as falsificações têm sido resolvidas, até agora, de modo razoavelmente satisfatório, quer pelo recurso à compressão mecânica horizontal dos processos individuais colocados nas prateleiras, caso dos arquivos, quer pelo emprego de cartolinas finas e ultrafinas, caso dos ficheiros. Apesar do incómodo problema da parede fundeira a que já se fez referência, é merecedor de todos os louvores o espírito de previsão dos arquitectos históricos que projectaram a Conservatória Geral do Registo Civil, propondo e defendendo, contra as opiniões conservadoras de certos espíritos tacanhos voltados para o passado, a instalação das cinco gigantescas armações de estantes que se erguem até ao tecto por trás dos funcionários, mais recuado o topo da estante do centro, que quase toca no cadeirão do conservador, mais chegados ao balcão os topos das estantes laterais extremas, ficando as outras duas, por assim dizer, a meio caminho. Consideradas ciclópicas e sobre-humanas por todos os observadores, estas construções estendem-se pelo interior do edifício mais do que os olhos logram alcançar, também porque a partir de certa altura começa a reinar a escuridão, apenas se acendendo as lâmpadas quando é preciso consultar algum processo. Estas armações de estantes são as que suportam o peso dos vivos. Os mortos, isto é, os papéis deles, estão metidos lá para dentro, menos bem acondicionados do que deveria permitir o respeito, por isso dão o trabalho que dão a encontrar quando um parente, um notário ou um agente de justiça vêm à Conservatória Geral requerer certificados ou cópias de documentos doutras épocas.
A desorganização dessa parte do arquivo é motivada e agravada pelo facto de serem precisamente os falecidos mais antigos os que mais próximos estão da área denominada activa, logo a seguir aos vivos, constituindo, segundo a inteligente definição do chefe da Conservatória Geral, um peso duas vezes morto, dado que é raríssimo preocupar-se alguém com eles, só de longe em longe se apresenta aqui algum excêntrico pesquisador de miudezas históricas de escassa relevância. Salvo que venha a ser decidido algum dia separar os mortos dos vivos, construindo noutro local uma nova Conservatória para recolha exclusiva dos defuntos, não há remédio para a situação, como se viu quando um dos subchefes, em hora infeliz, teve a lembrança de propor que a arrumação do arquivo dos mortos passasse a ser feita ao contrário, mais para lá os remotos, mais para cá os de fresca data, em ordem a facilitar, burocráticas palavras suas, o acesso aos defuntos contemporâneos, que, como se sabe, são os autores de testamentos, os provedores de heranças, e portanto fáceis objectos de disputas e contestações enquanto o corpo ainda está quente. Sarcástico, o conservador aprovou a ideia, sob condição de ser o próprio proponente o encarregado de empurrar para o fundo, dia após dia, a massa gigantesca dos processos individuais dos mortos pretéritos, a fim de poderem ir entrando no espaço assim recuperado os de recente defunção». In José Saramago, Todos os Nomes, Círculo de Leitores, licença de Editorial Caminho, 1997, ISBN 978-972-211-137-9.

Cortesia de CLeitores/JDACT