O
sudário intemporal
«Com o seu passo de metrónomo,
Theo calcorreava a via delia Scrofa sem se deixar distrair pelas várias
seduções de uma rua romana. Restavam dois minutos para chegar ao seu encontro,
mas ser-lhe-ia tão insuportável atrasar-se como adiantar-se. Contador
escrupuloso do tempo a si mesmo concedido e consentido aos outros, respeitava
um horário rigoroso, a fim de evitar qualquer espera. Como os outros não respeitavam
esta regra elementar da civilidade, Theo por vezes tinha de esperar
pacientemente, facto que não lhe trazia grande sofrimento pois a paz da sua
consciência, pelo menos neste aspecto, concedia-lhe a autoridade necessária
para censurar a incúria dos outros, que estigmatizava, de bom grado, com o
termo cromófagos. Com efeito, as suas obsessões horárias tinham por função
essencial apaziguar uma apreensão secreta. Theo delineava a sua eternidade, que
lhe era totalmente desconhecida, gerindo o tempo implacavelmente porque conhecia-o
bastante bem. À hora que se havia prescrito, com uma diferença inferior a dez segundos,
empurrou a porta do restaurante, sendo acolhido pelo mordomo com aquela
singular mistura de deferência e de condescendência que caracteriza o romano,
quando recebe um hóspede: instalou-o na mesa junto à porta de sacada aberta,
mesa essa que Theo reservara por telefone exactamente antes de deixar o seu quarto
de hotel. Theo deixou-se cair sobre o assento da cadeira, pois a sua respiração
estava ofegante devido a ter acelerado o passo ao longo dos últimos cem metros.
É claro que Colombe e Emmanuel não estavam presentes; o contrário teria sido
não só surpreendente como vexatório. Esfregou as mãos num reflexo de
satisfação. O cronómetro no bolso esquerdo do seu jaquetão tinha medido o tempo
decorrido desde o instante em que Theo tinha abandonado o hotel. Tirou a sua
calculadora e avaliou a duração do trajecto entre o Hotel Raphael e o Restaurante
Alfredo alia Scrofa, ou seja, uns escassos doze minutos
negligenciando os segundos. A base de dados do microprocessador incluía
informações regulares, revistas, de todos os trajectos de que normalmente se
servia. Consultava-a todas as noites, exactamente antes de se deitar, momento
em que estabelecia o horário para o dia seguinte. Para as deslocações
complexas, dispunha de indicações sobre o melhor percurso que completavam os
dados temporais. Por conseguinte, o tempo e o espaço de interesse para Theo eram
registados minuciosamente numa minúscula porção de silício com um milímetro
quadrado, o seu microcosmo racional num universo de desordem.
Theo deixou vaguear o olhar pela
sala do restaurante. Não tinha mudado, tudo estava em ordem, nas paredes as
fotografias com dedicatórias das celebridades dos anos 50, o mesmo mobiliário intemporal,
os ventiladores no tecto, os candelabros de vidro enfolado, bege, uma ementa
rigorosamente idêntica, empregados de mesa imóveis: um refúgio tranquilizador
contra a anarquia romana, um lugar estável num mundo em movimento. O Restaurante Alfredo alia Scrofa tinha
conhecido dias melhores, quando simbolizava um local de passagem obrigatório
para as celebridades de todo o mundo. Em Roma, os encontros da família de Fully
principiavam ritualmente aqui, porque se tratava de um local nobre dos seus
tempos de estudo. Naquela época, acontecia-lhes cruzarem-se ali com Marcello
Mastroianni. Elizabeth Taylor ou Robert Kennedy, tendo passado por figuras importantes
antes de virem a ser verdadeiramente. Pelo preço de um prato de fettucine,
era de borla. Da sua pasta, Theo tirou duas pequenas folhas dobradas em quatro,
abriu-as e leu-as com um desvelo maníaco. Esteve todo o tempo a reler o seu
escrito, tão enfatuado estava com a sua prosa científica em alemão, seca e
eficaz. Ao descobrir este escrito, o seu irmão Emmanuel ficará pelo menos
estupefacto, mesmo que não o demonstre. Com essa unção eclesiástica, que
dissimula tão mal a ignorância, dirá Subspecie aeternitatis..., e fará um gesto cada vez
mais vago da mão, simulando a passagem do tempo à eternidade por efeito de uma
suavidade de toque artístico. Mas que
sabia Emmanuel acerca do tempo? Estonteado pela leitura superficial de
algumas obras de divulgação científica, por vezes entregava-se a perigosas
glosas sobre a relatividade, misturando sem pudor o tempo segundo Newton e o
tempo segundo Einstein, o dia solar verdadeiro e o dia sideral, abrindo assim
perspectivas inquietantes sobre a ignorância de um teólogo em física, que tinha
tido a pretensão de dissertar sobre O Conceito de Eternidade em Duns Scot,
tema da sua tese de doutoramento em Friburgo.
Theo, por seu lado, sabia que
contar no que dizia respeito ao tempo, esse parâmetro físico que havia medido em
Neuchatel ao construir, nos anos sessenta, os melhores cronómetros de precisão
do planeta, os relógios atómicos de césio, que apresentavam uma imprecisão da
ordem de um segundo em três milhões de anos. Teve ainda a oportunidade de medir
o afrouxamento da rotação da Terra, que prolonga a duração do dia em dois
segundos em cada cem mil anos. Confirmou, também, o efeito da relatividade
sobre o tempo local, ao fazer transportar dois relógios em dois aviões que
deram a volta em torno da Terra, em sentidos opostos, e observou triunfalmente
as discrepâncias que daí resultaram. As súbitas inspirações de Einstein tinham
sido assim confirmadas pelos seus esforços. Ele aperfeiçoou a técnica subtil da
dendrocronologia, que se fundamenta no desconto dos cernes dos troncos de
árvore. Ao ligar a sequência dos cernes de uma árvore recentemente abatida com
as sequências extraídas de árvores mais antigas, executou um calendário de
verões quentes e de verões frios, caracterizados por cernes espessos e
finos, respectivamente. De árvore em árvore, chegou aos cinquenta séculos.
Deste modo, foi possível provar que uma vila neolítica, à beira do lago de
Neuchatel, tinha sido habitada durante pelo menos cento e vinte e três anos, já
que as quinhentas e vinte e uma estacas que suportavam as casas, mantendo-as
fora da água durante as inundações, provinham de árvores abatidas entre o
Inverno de 2795-2794 e o Inverno de 2673-2672 antes da nossa era». In Jacques
Neirynck, Le manuscrit du Saint-Sépulcre, O Manuscrito do Santo Sepulcro, Pocket,
2006, ISBN 9878-226-615-536-6.
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