sábado, 21 de março de 2015

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Na década de 1430-40, verificou-se mesmo uma fase de prosperidade, o número de arroteamentos aumentou e, a um ritmo variável de progresso e acalmia, mas também durante todo o século XVI»



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Os escravos na sociedade portuguesa
Nos finais do século XIV e primeira metade do século XV, Portugal registava um índice populacional sujeito a variações frequentes, nas quais é notória uma certa mobilidade da população. Por seu lado, o estado da agricultura acompanhava de perto essas alterações, influenciando e sendo influenciado por esses ritmos populacionais. Das palavras de Rui Pina, na Crónica do Rei D. Duarte, pode deduzir-se que por ocasião da morte de João I, em 1433, à excepção de Lisboa, o país era escassamente povoado, razão pela qual o soberano foi transportado nos últimos momentos de vida para esta cidade, pois não convinha morrer em aldeias e desertos mas na mais principal cidade do reino. Por sua vez, o infante Pedro, em 1436, no concelho de Leiria, referia-se a Portugal como sendo um reino financeiramente pobre, insuficientemente povoado e arroteado, mediante o qual jamais seria possível povoar e explorar convenientemente as novas conquistas. No dizer de Costa Lobo, Portugal do século XV era um vasto matagal entressachado, afora algumas cidades e vilas, de pequenas povoações circundadas de breves arroteas. O Alentejo era na máxima parte uma brenha selvática. Para outros autores, o país estagnava no dourado sonho das vãs riquezas, de pouco ou mesmo nada lhe valendo os fumos da Índia.
É um facto que o desenvolvimento económico e o crescimento populacional, verificados em Portugal durante o século XIII, sofreram uma contracção ao longo do século XIV e primeira metade do século XV, se bem que neste período se tivessem notado momentos de fluxo e refluxo económico. Todavia, o estado da agricultura em Portugal nos séculos XV e XVI não era tão dramático como à partida se poderia pensar, através dos testemunhos da época. Na década de 1430-40, verificou-se mesmo uma fase de prosperidade, o número de arroteamentos já verificados em anos anteriores aumentou e, a um ritmo variável de progresso e acalmia, continuaria não só na segunda metade do século XV, mas também durante todo o século XVI. Esta atitude denota bem o interesse da população na aquisição de novos espaços, o que leva a crer ter existido uma preocupação de aumento de produção face a um crescimento demográfico. Uma vez que o atraso das técnicas agrárias não permitia o desenvolvimento intensivo da agricultura, optava-se pela realização de culturas extensivas a fim de dar resposta às necessidades da populagão. Apesar disso, não se pode deixar de acreditar, de facto, na existência de um certo vácuo na população activa do reino, sobretudo nas zonas rurais. Fustigadas por maus anos agrícolas, fomes, conflitos internos e por epidemias frequentes, as populações eram levadas a deixarem as terras onde habitavam e a tentarem a sorte noutras regiões. Sobretudo após os anos em que a peste negra deflagrou, associada a outros factores, intensificou-se a falta de gente nos campos, provocada não apenas pelas elevadas taxas de mortalidade, mas também devido à movimentação populacional e à mobilização dos efectivos para a guerra.
Ao longo dos séculos XIV e XV, tornaram-se frequentes as migrações do campo para a cidade, onde a existência podia ser mais cómoda, sobretudo se os indivíduos se conseguissem inserir no sector comercial ou artesanal urbano. A cidade oferecia mais oportunidades e possibilidades de resistir. A miragem de grandes e fartas riquezas também devia ter exercido uma forte atracção sobre essa gente que se dirigia às cidades em busca de trabalho e melhores condições de vida. Daí partiam à aventura, recrutados para as empresas marítimas ou emigrados com destino à Índia, às possessões espanholas, ou à vizinha Espanha, na ânsia de melhor sorte. Porém, o seu prémio não foi muitas vezes além da miséria e da mendicidade. Aqueles que possuíam algo de seu, mas que era insuficiente para a sua subsistência, optavam frequentemente por se colocarem sob a protecção de um convento, por servir em grandes casas senhoriais ou entregavam-se ao exercício das armas, timbre de nobreza, o que em parte ia ao encontro das tendências nobiliárquicas de um certo sector da sociedade. Dentro das regiões rurais, inclusive, havia mobilidade populacional, em especial das zonas menos férteis para as mais férteis ou melhor localizadas ou, então, para áreas onde os trabalhos à jorna eram mais lucrativos devido à falta de braços e à abundância de terras. Os arroteamentos, os parcelamentos, a compra e venda de propriedades, a procura de novas fontes de rendimento para a economia rural, a opção pelo trabalho à jorna, são atitudes sintomáticas não apenas de uma mudança económica, mas igualmente de uma transformação a nível social. Por mais variados que se apresentassem os índices demográficos, é detectável no campesinato a tendência para uma certa mobilidade. O camponês ia adquirindo a liberdade de se poder movimentar de umas para outras regiões, consoante os seus interesses, sobretudo em épocas em que a falta de mão-de-obra ou o imperativo de certas tarefas (lavras, sementeiras e colheitas), levava à subida do preço da jorna. Nessas alturas intensificavam-se as movimentações de trabalhadores e, inclusivamente, era frequente a quebra de contratos.
A existência destes assalariados não excluía a mão-de-obra escrava, moura ou cristã, quer nos serviços agrícolas, quer nos domésticos, ou mesmo em ofícios artesanais. É conhecido o caso de Fernando Perez, senhor territorial e fundador de São Paulo de Almaziva, que em 1220 possuía mancebos a quem pagava soldada e também dispunha de caseiros fixos, morando nas terras do domínio, para além de oito mouros e uma moura com um filho, que possivelmente constituíam mão-de-obra escrava. Dois destes servos eram artesãos; havia, ainda, um vinitor e hortelão, um colmeiro, um alfageme e um forneiro. Também o chantre Pedro Martins, no seu testamento de 1322, deixou uma serva com um filho ao serviço de uma freira de Celas, e uma ancilla que, depois de servir outra pessoa, ficaria, por morte desta, em liberdade. Segundo o estudo O baixo Mondego nos finais da Idade Média, de Maria Helena Cruz Coelho, os escravos no século XIV destinavam-se em especial aos trabalhos domésticos e a serviços nas reservas senhoriais, concluindo que por esta altura não era com servos que se cultivavam os campos, mas com homens livres que se lhe dedicavam, cumprindo cláusulas contratuais ou a troco de uma retribuição pelos seus dias de trabalho». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT