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Os escravos na sociedade portuguesa
Nos finais do século XIV e primeira metade do século XV, Portugal registava
um índice populacional sujeito a variações frequentes, nas quais é notória uma
certa mobilidade da população. Por seu lado, o estado da agricultura acompanhava
de perto essas alterações, influenciando e sendo influenciado por esses ritmos
populacionais. Das palavras de Rui Pina, na Crónica
do Rei D. Duarte, pode deduzir-se que por ocasião da morte de João I,
em 1433, à excepção de Lisboa, o
país era escassamente povoado, razão pela qual o soberano foi transportado nos
últimos momentos de vida para esta cidade, pois não convinha morrer em aldeias e desertos mas na mais principal cidade
do reino. Por sua vez, o infante Pedro, em 1436, no concelho de Leiria, referia-se a Portugal como sendo um
reino financeiramente pobre, insuficientemente povoado e arroteado, mediante o
qual jamais seria possível povoar e explorar convenientemente as novas
conquistas. No dizer de Costa Lobo, Portugal do século XV era um vasto matagal entressachado, afora
algumas cidades e vilas, de pequenas povoações circundadas de breves arroteas.
O Alentejo era na máxima parte uma brenha selvática. Para outros autores, o
país estagnava no dourado sonho das vãs riquezas, de pouco ou mesmo nada lhe
valendo os fumos da Índia.
É um facto que o desenvolvimento económico e o crescimento populacional,
verificados em Portugal durante o século XIII, sofreram uma contracção ao longo
do século XIV e primeira metade do século XV, se bem que neste período se
tivessem notado momentos de fluxo e refluxo económico. Todavia, o estado da
agricultura em Portugal nos séculos XV e XVI não era tão dramático como à
partida se poderia pensar, através dos testemunhos da época. Na década de 1430-40,
verificou-se mesmo uma fase de prosperidade, o número de arroteamentos já
verificados em anos anteriores aumentou e, a um ritmo variável de progresso e
acalmia, continuaria não só na segunda metade do século XV, mas também durante
todo o século XVI. Esta atitude denota bem o interesse da população na
aquisição de novos espaços, o que leva a crer ter existido uma preocupação de
aumento de produção face a um crescimento demográfico. Uma vez que o atraso das
técnicas agrárias não permitia o desenvolvimento intensivo da agricultura,
optava-se pela realização de culturas extensivas a fim de dar resposta às necessidades
da populagão. Apesar disso, não se pode deixar de acreditar, de facto, na
existência de um certo vácuo na população activa do reino, sobretudo nas zonas
rurais. Fustigadas por maus anos agrícolas, fomes, conflitos internos e por
epidemias frequentes, as populações eram levadas a deixarem as terras onde
habitavam e a tentarem a sorte noutras regiões. Sobretudo após os anos em que a
peste negra deflagrou, associada a outros factores, intensificou-se a falta de
gente nos campos, provocada não apenas pelas elevadas taxas de mortalidade, mas
também devido à movimentação populacional e à mobilização dos efectivos para a
guerra.
Ao longo dos séculos XIV e XV, tornaram-se frequentes as migrações do campo
para a cidade, onde a existência podia ser mais cómoda, sobretudo se os indivíduos
se conseguissem inserir no sector comercial ou artesanal urbano. A cidade
oferecia mais oportunidades e possibilidades de resistir. A miragem de grandes
e fartas riquezas também devia ter exercido uma forte atracção sobre essa gente
que se dirigia às cidades em busca de trabalho e melhores condições de vida.
Daí partiam à aventura, recrutados para as empresas marítimas ou emigrados com
destino à Índia, às possessões espanholas, ou à vizinha Espanha, na ânsia de
melhor sorte. Porém, o seu prémio não foi muitas vezes além da miséria e da
mendicidade. Aqueles que possuíam algo de seu, mas que era insuficiente para a
sua subsistência, optavam frequentemente por se colocarem sob a protecção de um
convento, por servir em grandes casas senhoriais ou entregavam-se ao exercício
das armas, timbre de nobreza, o que em parte ia ao encontro das tendências
nobiliárquicas de um certo sector da sociedade. Dentro das regiões rurais,
inclusive, havia mobilidade populacional, em especial das zonas menos férteis
para as mais férteis ou melhor localizadas ou, então, para áreas onde os
trabalhos à jorna eram mais lucrativos devido à falta de braços e à abundância
de terras. Os arroteamentos, os parcelamentos, a compra e venda de
propriedades, a procura de novas fontes de rendimento para a economia rural, a
opção pelo trabalho à jorna, são atitudes sintomáticas não apenas de uma
mudança económica, mas igualmente de uma transformação a nível social. Por mais
variados que se apresentassem os índices demográficos, é detectável no
campesinato a tendência para uma certa mobilidade. O camponês ia adquirindo a
liberdade de se poder movimentar de umas para outras regiões, consoante os seus
interesses, sobretudo em épocas em que a falta de mão-de-obra ou o imperativo
de certas tarefas (lavras, sementeiras e colheitas), levava à subida do preço
da jorna. Nessas alturas intensificavam-se as movimentações de trabalhadores e,
inclusivamente, era frequente a quebra de contratos.
A existência destes assalariados não excluía a mão-de-obra escrava,
moura ou cristã, quer nos serviços agrícolas, quer nos domésticos, ou mesmo em ofícios
artesanais. É conhecido o caso de Fernando Perez, senhor territorial e fundador
de São Paulo de Almaziva, que em 1220
possuía mancebos a quem pagava soldada
e também dispunha de caseiros fixos, morando nas terras do domínio, para além
de oito mouros e uma moura com um filho, que possivelmente constituíam
mão-de-obra escrava. Dois destes servos eram artesãos; havia, ainda, um vinitor e hortelão, um colmeiro,
um alfageme e um forneiro. Também o chantre Pedro Martins, no seu
testamento de 1322, deixou uma serva
com um filho ao serviço de uma freira de Celas, e uma ancilla que, depois de servir outra pessoa, ficaria, por
morte desta, em liberdade. Segundo o estudo O baixo Mondego nos finais da Idade
Média, de Maria Helena Cruz Coelho, os escravos no século XIV
destinavam-se em especial aos trabalhos domésticos e a serviços nas reservas
senhoriais, concluindo que por esta altura não era com servos que se cultivavam os campos, mas com homens livres que se
lhe dedicavam, cumprindo cláusulas contratuais ou a troco de uma retribuição pelos
seus dias de trabalho». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao
Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de
Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.
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