«Vais-me desculpar, mas não pareces judia. Não uma judia como eu, pelo menos. Para começar, és bonita: pele lisa, feições delicadas, nariz pequeno, bem diferente do meu nariz judaico, grande, poderoso, um nariz que fareja mais coisas do que deveria farejar. Eu não sou feia,
propriamente, mas estou muito castigada, pela idade e sobretudo pela vida. Olha
a minha cara, olha as rugas, as olheiras...
Castigada, sim. Sofri muito. E é por isso que a tua beleza me
chama a atenção: sofreste, mas nem por isso o
sofrimento aparece nas tuas feições. Sim, és bela. Só não me agrada muito a tua expressão. Para o meu
gosto, pareces meio desligada. Claro, as
santas têm de ser desligadas mesmo, a santidade coloca
a pessoa numa outra dimensão, distante desta em que vivemos nós, mortais
pecadores; mas isso me incomoda um pouco, acentua a diferença entre nós. Não tens nada de judia, muito menos
de judia sofredora. Não foi uma judia que serviu de modelo para o artista que
fez a tua imagem. Aliás, grande artista não deve ter sido; caso contrário, não
estarias na capela de um hospício, estarias num museu qualquer, as pessoas fazendo fila para te ver. Mas não, estás aqui. E eu também estou aqui, falando e te dizendo
coisas. Porque sou louca, claro; as loucas falam
com imagens. Loucas falam sozinhas, é o meu
caso, e não podes imaginar a chata que sou, loucas falam com as panelas, falam
com as paredes, falam com as pedras, por que não falariam com
imagens? Pelo menos a gente tem a sensação de que
está falando com alguém. Não é ruim falar com
imagens. Não é ruim, não; não é ruim. Tantas pessoas falam com santos... É um consolo, é uma coisa que entendo, mesmo não sendo católica. Aliás, nunca fui muito religiosa, não frequentei a sinagoga, e uma das razões pelas quais eu não ia lá era exactamente esta: não tinha
nada para ver, naquele lugar. A religião judaica proíbe qualquer tipo de
imagem. Nem mesmo de Deus. Principalmente de Deus. Para mim, Deus sempre foi uma figura imaginária. Criança, pensava
nele como um velho de olhar severo, de longas barbas brancas. Pensava num Deus com
a cara do meu avô Jacob. Que não era um homem
bom, longe disso. Batia nos netos, o
nojento, e uma vez me deu uma surra que me deixou cheia
de manchas roxas. Até hoje não sei por que me bateu;
decerto eu encarnava os demónios dele, que não eram poucos e que o seguiram da Polónia
até ao Brasil, aonde chegou ainda rapaz. Veio
para o Brasil sonhando ficar rico, o que nunca
conseguiu: não passava de um pequeno e mal-sucedido comerciante, que botava a
culpa do seu fracasso no governo, nos concorrentes, na família, nos netos,
principalmente nos netos: essas crianças me
irritam, me tiram da paciência, não
posso me concentrar nos negócios, desse jeito nunca ficarei rico. E então, ai
de quem estivesse perto, e eu sempre estava perto. Como não estaria perto de Deus? Eu o olhava, fascinada,
esperando que a qualquer instante ele fizesse um milagre, talvez ascendendo no
ar, até o forro da casa, pelo menos. O meu avô
não fazia milagres. Era religioso, rezava muito, pedindo ao Senhor que lhe trouxesse bons clientes, mas não
fazia milagres, nem tratava bem as pessoas. Quando morreu, deixei de ir à sinagoga, coisa que sempre exigira de mim. Deixei de rezar, deixei de jejuar. Não dava certo mesmo;
eu não conseguia nada do que pedia a Deus. Para usar as palavras de meu avô (que
não entendia muito de negócios, mas sabia falar difícil)
aquilo era um mau investimento. Talvez isto não te agrade muito, mas desisti
das esferas superiores, aquelas nas quais vives e que me parecem distantes,
inacessíveis. Vamos resolver as coisas por aqui mesmo, decidi. Fiquei
mais prática, sabes? Mais prática. Deus
não é importante, concluí; comida é
importante, roupa é importante. Troquei o
sublime pela realidade. E, apesar de
estar na tua presença, devo dizer que não me
arrependo. Fiquei prática. Prática e louca. Estranhas essa combinação? Mas esta é a vantagem da loucura:
dá para combinar com qualquer coisa, até com espírito prático, e eu fiz isso
muito tempo. Só não quis a santidade. A tua santidade, francamente, não me
interessa. Agora, deves estar perguntando: a troco de quê vem
essa mulher aqui, essa judia, dizer essas coisas? Ela não sabe que está no
lugar errado, que isto é uma capela, que
aqui só entram os crentes? Sai, mulher. Vai-te daqui, louca. Desaparece antes que te consumam as chamas
do inferno. Desaparece. Eu sei que este não é meu lugar. Mas para onde iria? Estou
presa. Trancaram-me aqui há duas semanas. No
começo até me amarravam, e tinham de me amarrar mesmo, porque eu agredia as
pessoas, era louca furiosa, arranhava, mordia, dava pontapés. Deram-me uns
remédios, e me acalmei. Depois de uns dias, soltaram-me, permitiram que eu
andasse pelos corredores. Foi assim que
descobri esta capela. É melhor do que a
enfermaria, isto. Ninguém gritando, ninguém
se jogando no chão, ninguém agredindo ninguém.
Silêncio. E as velas acesas. E a tua imagem, a imagem de Nossa Senhora, a
imagem que as pessoas reverenciam. A mim ninguém
reverencia. Sou pouco importante, e sou
louca, ainda por cima. Não posso negar que
sinto uma certa inveja em relação a ti. Mas é bom
estar aqui, nos teus domínios. Não vou dizer que me sinto bem nesta capela,
porque não me sinto bem em lugar nenhum, sempre aquela angústia, aquela raiva, aquela vontade de gritar, de
quebrar tudo, de bater nos outros, que
posso
fazer? Loucura é assim mesmo. Mas aqui dentro
não me sinto louca. Não me sinto tão louca,
pelo menos. Aqui sinto-me calma. Calma assim eu só sentia quando ia à biblioteca, perto da minha casa». In Moacyr Scliar, Mãe Judia. 1964. Vozes do
Golpe, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-475-8.
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