segunda-feira, 23 de março de 2015

Mãe Judia. 1964. Vozes do Golpe. Moacyr Scliar. «É um consolo, é uma coisa que entendo, mesmo não sendo católica. Aliás, nunca fui muito religiosa, não frequentei a sinagoga, e uma das razões pelas quais eu não ia lá era exactamente esta: não tinha nada para ver, naquele lugar»

Cortesia de wikipedia


«Vais-me desculpar, mas não pareces judia. Não uma judia como eu, pelo menos. Para começar, és bonita: pele lisa, feições delicadas, nariz pequeno, bem diferente do meu nariz judaico, grande, poderoso, um nariz que fareja mais coisas do que deveria farejar. Eu não sou feia, propriamente, mas estou muito castigada, pela idade e sobretudo pela vida. Olha a minha cara, olha as rugas, as olheiras... Castigada, sim. Sofri muito. E é por isso que a tua beleza me chama a atenção: sofreste, mas nem por isso o sofrimento aparece nas tuas feições. Sim, és bela. Só não me agrada muito a tua expressão. Para o meu gosto, pareces meio desligada. Claro, as santas têm de ser desligadas mesmo, a santidade coloca a pessoa numa outra dimensão, distante desta em que vivemos nós, mortais pecadores; mas isso me incomoda um pouco, acentua a diferença entre nós. Não tens nada de judia, muito menos de judia sofredora. Não foi uma judia que serviu de modelo para o artista que fez a tua imagem. Aliás, grande artista não deve ter sido; caso contrário, não estarias na capela de um hospício, estarias num museu qualquer, as pessoas fazendo fila para te ver. Mas não, estás aqui. E eu também estou aqui, falando e te dizendo coisas. Porque sou louca, claro; as loucas falam com imagens. Loucas falam sozinhas, é o meu caso, e não podes imaginar a chata que sou, loucas falam com as panelas, falam com as paredes, falam com as pedras, por que não falariam com imagens? Pelo menos a gente tem a sensação de que está falando com alguém. Não é ruim falar com imagens. Não é ruim, não; não é ruim. Tantas pessoas falam com santos... É um consolo, é uma coisa que entendo, mesmo não sendo católica. Aliás, nunca fui muito religiosa, não frequentei a sinagoga, e uma das razões pelas quais eu não ia lá era exactamente esta: não tinha nada para ver, naquele lugar. A religião judaica proíbe qualquer tipo de imagem. Nem mesmo de Deus. Principalmente de Deus. Para mim, Deus sempre foi uma figura imaginária. Criança, pensava nele como um velho de olhar severo, de longas barbas brancas. Pensava num Deus com a cara do meu avô Jacob. Que não era um homem bom, longe disso. Batia nos netos, o nojento, e uma vez me deu uma surra que me deixou cheia de manchas roxas. Até hoje não sei por que me bateu; decerto eu encarnava os demónios dele, que não eram poucos e que o seguiram da Polónia até ao Brasil, aonde chegou ainda rapaz. Veio para o Brasil sonhando ficar rico, o que nunca conseguiu: não passava de um pequeno e mal-sucedido comerciante, que botava a culpa do seu fracasso no governo, nos concorrentes, na família, nos netos, principalmente nos netos: essas crianças me irritam, me tiram da paciência, não posso me concentrar nos negócios, desse jeito nunca ficarei rico. E então, ai de quem estivesse perto, e eu sempre estava perto. Como não estaria perto de Deus? Eu o olhava, fascinada, esperando que a qualquer instante ele fizesse um milagre, talvez ascendendo no ar, até o forro da casa, pelo menos. O meu avô não fazia milagres. Era religioso, rezava muito, pedindo ao Senhor que lhe trouxesse bons clientes, mas não fazia milagres, nem tratava bem as pessoas. Quando morreu, deixei de ir à sinagoga, coisa que sempre exigira de mim. Deixei de rezar, deixei de jejuar. Não dava certo mesmo; eu não conseguia nada do que pedia a Deus. Para usar as palavras de meu avô (que não entendia muito de negócios, mas sabia falar difícil) aquilo era um mau investimento. Talvez isto não te agrade muito, mas desisti das esferas superiores, aquelas nas quais vives e que me parecem distantes, inacessíveis. Vamos resolver as coisas por aqui mesmo, decidi. Fiquei mais prática, sabes? Mais prática. Deus não é importante, concluí; comida é importante, roupa é importante. Troquei o sublime pela realidade. E, apesar de estar na tua presença, devo dizer que não me arrependo. Fiquei prática. Prática e louca. Estranhas essa combinação? Mas esta é a vantagem da loucura: dá para combinar com qualquer coisa, até com espírito prático, e eu fiz isso muito tempo. Só não quis a santidade. A tua santidade, francamente, não me interessa. Agora, deves estar perguntando: a troco de quê vem essa mulher aqui, essa judia, dizer essas coisas? Ela não sabe que está no lugar errado, que isto é uma capela, que aqui só entram os crentes? Sai, mulher. Vai-te daqui, louca. Desaparece antes que te consumam as chamas do inferno. Desaparece. Eu sei que este não é meu lugar. Mas para onde iria? Estou presa. Trancaram-me aqui há duas semanas. No começo até me amarravam, e tinham de me amarrar mesmo, porque eu agredia as pessoas, era louca furiosa, arranhava, mordia, dava pontapés. Deram-me uns remédios, e me acalmei. Depois de uns dias, soltaram-me, permitiram que eu andasse pelos corredores. Foi assim que descobri esta capela. É melhor do que a enfermaria, isto. Ninguém gritando, ninguém se jogando no chão, ninguém agredindo ninguém. Silêncio. E as velas acesas. E a tua imagem, a imagem de Nossa Senhora, a imagem que as pessoas reverenciam. A mim ninguém reverencia. Sou pouco importante, e sou louca, ainda por cima. Não posso negar que sinto uma certa inveja em relação a ti. Mas é bom estar aqui, nos teus domínios. Não vou dizer que me sinto bem nesta capela, porque não me sinto bem em lugar nenhum, sempre aquela angústia, aquela raiva, aquela vontade de gritar, de quebrar tudo, de bater nos outros, que posso fazer? Loucura é assim mesmo. Mas aqui dentro não me sinto louca. Não me sinto tão louca, pelo menos. Aqui sinto-me calma. Calma assim eu só sentia quando ia à biblioteca, perto da minha casa». In Moacyr Scliar, Mãe Judia. 1964. Vozes do Golpe, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-475-8. 

Cortesia de Cletras/JDACT