A
figura do rei através dos documentos oficiais do seu reinado
«(…) Poderemos sempre questionar
se as decisões originadas nas Cortes (tal como, mais tarde, as exaradas na
Chancelaria) são o reflexo das vontades e convicções do rei Pedro I ou se, pelo
contrário, resultam das opiniões maioritárias do seu Conselho, o qual ajudava
na elaboração dos documentos escritos que constituíam as respostas às queixas
(ou agravamentos) apresentadas pelos
grupos sociais ou pelos diversos concelhos. Este Conselho Real continua a
acompanhar o rei ao longo do seu reinado, desempenhando funções consultivas,
mas o seu verdadeiro peso nas decisões régias permanecerá sempre uma incógnita:
se alguns salientam a sua importância, como Joel Serrão e Oliveira Marques, que
associam a manutenção da paz no reino ao facto de o rei se ter rodeado de bons
conselheiros, outros, pelo contrário, consideram que o conselho assumia uma
posição subalterna, confinado, na prática, a intervir apenas quando o rei o
chamava a pronunciar-se ou, caso este se ausentasse, a decidir nos casos mais
simples. É possível que o rei se tivesse escudado inicialmente nos conselhos de
homens experientes que o acompanhavam desde os tempos dos confrontos com Afonso
IV, passando a agir de forma individual, à medida que ia adquirindo mais
experiência e confiança nas suas próprias capacidades; de tal modo que,
justificando decisões suas quanto à centralização dos mecanismos de desembargo,
o rei mostra não abdicar do seu direito de controlar bem de perto a aplicação
da justiça que era feita em seu nome: per
esta guisa vera el rrey todo o que se livra na sua corte. Assim, a
importância do Conselho Real ter-se-ia esvaziado gradualmente, até ser apenas
um meio de conseguir que a máquina judicial continuasse a funcionar quando o rei
se ausentasse para as suas diversões venatórias, constituindo excepção os casos
mais complexos, que esperariam o seu regresso.
Esta aparente falta de responsabilidade
de um rei que abandona o trono e os deveres a ele associados para se divertir
caçando, por vezes durante longos espaços temporais, pode levar-nos a reflexões
um pouco mais complexas. É verdade que Pedro I se deu conta da necessidade de
colmatar a sua ausência, delegando poderes nos seus oficiais de justiça, embora
se reservasse o direito de fazer esperar pela sua real decisão os casos mais
complexos, como já vimos; mas também não podemos deixar de atribuir algum
significado ao facto de, durante os dez anos do seu reinado, raramente se encontrar
num mesmo local mais de um mês. O estudo dos seus itinerários, baseado nos documentos
da chancelaria real, confirma esta característica; mas quanto às causas, mais
uma vez, não existe consenso. Mesmo entre os historiadores mais recentes, há
divergências essenciais quanto às motivações de Pedro I: Oliveira Marques, por
exemplo, identifica o rei com um indivíduo
incapaz de se demorar em qualquer cidade ou região, com necessidade constante
de mudança, em suma, um homem instável no mais elevado grau; por outro
lado, Veríssimo Serrão apresenta-o como um
Monarca itinerante, que calcorreou as estradas para levar a presença régia a
todos os cantos do País, sacrificando-se e agindo sempre em prol grande da sua terra. É esta
última posição a que parece reunir a preferência dos estudiosos actuais. Luís
Krus, em comentário breve à edição da Chancelaria de D. Pedro, acredita que o facto
de o monarca viajar por todo o reino, ouvindo os povos, cimenta a própria
unidade do país através da sua simples presença e acção. Dora Luís, por outro
lado, prefere salientar a sensatez do rei, já que considera que as suas viagens são uma excelente
estratégia de relações-públicas e de propaganda, porque exponenciam a projecção
da sua imagem. O hábito de viajar pelo país viria já, aliás, da juventude
do infante, atitude a que se poderia atribuir uma intenção concreta do príncipe
herdeiro, que circulava constantemente de
terra em terra fazendo-se conhecido e estimado.
Parece-nos
difícil crer que Pedro I desde tão cedo previsse a necessidade de captar as
simpatias do povo para fortalecer o seu próprio poder daí a vários anos, tanto mais
que não poderia antever as tensões imediatamente anteriores à sua investidura. Mas
se o novo rei fez questão de continuar a obra legislativa de seu pai, sabendo aproveitar a herança de Afonso IV, respeitá-la,
mantê-la e segui-la, a verdade é que não demorou muito tempo a controlar os
poderes dos nobres e a tomar medidas concretas que afrontaram o clero de forma
significativa, tudo isto com um apoio já incondicional do povo, cuja confiança
o rei cultivaria de forma consciente. Esta estratégia de consolidação do poder
parece ter assentado também, segundo Valentino Viegas, na substituição dos
alcaides por pessoas da confiança do rei e na distribuição de cargos
importantes a vassalos escolhidos, certamente não de modo aleatório; desta
forma e através da concessão de alguns benefícios, o rei dominava a engrenagem do poder central. Isto apesar de não ser, de
todo, consensual a ideia de que Pedro I tenha sido extremamente liberal: de
acordo com o referido autor, o rei Pedro
I foi bastante comedido em acrescentamentos, incomparavelmente mais do que os
seus sucessores, a não ser que os seus antecessores fossem ainda mais
parcimoniosos, o que parece confirmar-se pelo menos em relação a Afonso IV».
In
Pedro Jorge Rodrigues, A personagem D.
Pedro, Na narrativa portuguesa do dealbar do século XXI, Tese de Mestrado em
Estudos Portugueses Interdisciplinares, Universidade Aberta, Coimbra, 2006,
Cortesia
de UAberta, Coimbra/JDACT