quinta-feira, 19 de março de 2015

Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «Decerto que também ela o entendeu como um tributo de homenagem; mas pairava não sei que sombra de insegurança na simplicidade muito frontal com que se deixava contemplar. Os olhos, enormes, inexcedivelmente bem talhados, mais que verdes, mais que azuis…»

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«(…) Deixemo-nos de complacências: não vale a pena iludir-me, porque é assim mesmo. Quanto mais os anos passam mais me interessa encontrar, na própria vida, aquela chamada Beleza, se possível com B grande, de que pareço fazer troça em quase todos os objectos que me saem das mãos. Ou, pelo menos, a plenitude, a beatitude que o usufruto de tal Beleza deveria trazer consigo. Se as traz ou não traz, já é outro problema. Não sei se o seu caso é igual, ou semelhante, ou um pouco diferente. Juraria, apesar de tudo, que nos encontramos ambos à deriva entre o que somos por dentro e o que a nossa época nos obriga a fazer. Os meus objectos! Já pensei chamar-lhes hobbyjectos; já desejei chamar-lhes hollyjectos. O meu marchand de Lausanne, esse desmancha-prazeres, é que tem torcido o nariz a ambas as designações. Mas não consigo deixar de realizá-los como qualquer coisa a meio caminho entre um passatempo e um culto. E sobretudo assim os entendo. O que não impede, é claro, que eles sejam antes, para a maioria das pessoas, mais dejectos que objectos, com bem pouco de divertido, muito menos de sagrado. E depois, ou antes, como se já isto não bastasse, aquela necessidade de uma espécie de orgasmo, de repetido orgasmo, que tanto existe no desejo de atirar umas palavras contra as outras como na fúria de fundir ou de confundir uns quantos materiais de natureza muito diversa. Talvez eu também saiba, a respeito da primeira dessas tarefas, um pouco mais do que você julga. É possível, sim, que sejamos crianças. Mas, dentro das crianças que somos, nunca tão-pouco deixámos de ser monstruosamente adultos.
E sempre me fez a maior impressão o raio de semelhança que existe entre a palavra adulto e a palavra adúltero. Adultos, adúlteros. Curioso! Aí estão duas expressões que nunca aparecem nas letras dos fados. Pelo menos, em nenhum daqueles que tínhamos acabado de ouvir. Mas nós os dois, só por meias palavras, ficámos então a saber que temos praticamente a mesma vocação. E que, no entanto, não haveria, de momento, grandes possibilidades nem grande interesse de a realizarmos em comum. Que antes existiríamos, de momento, para um ao outro nos compreendermos. Se é que não mesmo para mutuamente nos ajudarmos, você com a sua intuição, eu com a minha experiência. Ou vice-versa. Já percebi... O quê?, perguntei. Porque ficámos de repente calados. Então porque foi? Acendi-lhe mais um dos seus longos cigarros More. E você prosseguiu, por entre uma primeira baforada de fumo: Sabe tão bem como eu. Porque estamos aqui a pensar em duas outras pessoa... E com imensa vontade de falarmos delas. É, capaz de ser isso. Mas o melhor é não dizermos nada... Como queira. Só uma pergunta... Posso?... Claro que pode. Sobre a pessoa em que você está a pensar... Muito mais nova que você? Uns vinte anos. Parece-lhe muito? Parece-lhe de mais? Nem por sombras. De maneira nenhuma. E no seu caso? Uns vinte e tantos mais velho do que eu. Também deve estar certo. Claro que está. Isso posso eu garantir-lhe. Já dura há muito tempo? Há mais de um ano. E vocês? Menos. Bastante menos. Havia apenas um mês, nem tanto, que eu tinha conhecido a Y.

Ao longo de todo o jantar (tinham-nos colocado em mesinhas contíguas, mas, por sorte, quase defronte um do outro) sei que estive constantemente a olhá-la, que não podia sequer fazer outra coisa, e com tal insistência que seria desaforo se não se desse a própria circunstância da sua beleza. Decerto que também ela o entendeu como um tributo de homenagem; mas pairava não sei que sombra de insegurança na simplicidade muito frontal com que se deixava contemplar. Os olhos, enormes, inexcedivelmente bem talhados, mais que verdes, mais que azuis, na zona do inverosímil, já à beira do impossível. Tenho aí, dentro dessas pastas, dezenas ou até centenas de esboços, uns com o modelo à vista, outros bosquejados de memória, do pescoço da Y, dos ombros e do peito da Y, dos braços da Y, de todo o corpo da Y. Só nunca me atrevi a desenhar-lhe o rosto. Muito menos os olhos». ». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986.

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