«(…) A vida de ambos era feita de desencontros que só
prolongavam o desejo de reencontros. O mais difícil era sufocar os sentimentos.
Como fazer para que ninguém percebesse
o que sentiam um pelo outro? Eles se escreviam. Nestas cartas, tem-se
apenas uma pequena amostra do que foi o amor que compartilharam durante 34
anos. De um sentimento confessado, noite e dia, como se confessa uma fé. Ela
acabou com a timidez dele. Sua malícia era um convite. E ele aceitou, confiando
nela. Admirava-a e lhe concedeu todas as intimidades. E acabaram vivendo um
romance único. O elo que os unia era muito forte. Ia muito além das necessidades primitivas, nome que se
dava ao puro e simples desejo sexual. Era uma mistura sublime de amizade,
ternura, entusiasmo pela beleza e o encontro de almas. Um sentimento construído
num momento histórico especial: o século XIX, o século do romantismo. Ele
era Pedro II, o imperador do Brasil. Ela, a condessa de Barral.
O nascimento da camaleoa
No dia em que Luísa Margarida Portugal Barros, a futura
condessa de Barral, nasceu, o centro do quarto estava ocupado por uma
cama de armação com cortinado. Nela, deitada de costas, estava uma mulher com a
camisola de cassa e renda repuxada até o pescoço. O chão coberto por esteiras
trançadas e as paredes pintadas com arabescos davam um ar alegre ao aposento.
Entre resmungos e gemidos, a parturiente beijava escapulários espalhados sobre
o lençol. Os cabelos pretos grudavam na testa suada. Ela contraía o rosto de
dor. Apoiada num rolo de panos, abria as pernas, seguras por três ou quatro
parteiras. Uma delas lubrificou a genitália com uma mistura de gordura de
galinha e óleo de açucenas. Seguindo o costume, esta mesma parteira rompeu a
placenta com a unha comprida do dedo mínimo. A seguir, molhou as partes íntimas
da futura mãe, com vinho quente. Na cabeceira, as outras gritavam: Puxa, puxa.
Se não estivesse para dar à luz, a parturiente estaria como
outras beldades da cidade, no balcão enfeitado de sua casa, pronta para assistir
à passagem da procissão. Mas, no quarto, dona Maria do Carmo Portugal Barros
aguardava quase em silêncio as contracções. À volta, comadres, escravas e uma
ou outra parenta viúva traziam mais bacias de água e panos limpos. Tinham
passado um cordão de S. António em volta da barriga dela e amarrado no joelho
esquerdo uma pedra chamada de mombaza,
cuja função mágica era a de atrair a criança para fora. Em roda parte, havia
velas acesas diante de imagens protectoras: Nossa Senhora do Parto, do Leite,
Sant'Ana e Santa Margarida. Tomara muito chá de canela para parir filho macho.
Quando começou a perder águas, serviram-lhe ovos quentes, café e vinho do
Porto. Mãe e filha eram muito parecidas: pele alva, cílios longos, olhos e
cabelos escuros. Dona Maria do Carmo entrou em resguardo e a pequena
Luísa cumpriu alguns rituais. Pingaram nos seus olhos gotas de limão
verde, foi mordida por uma pessoa de belos dentes e tomou o primeiro banho, com
uma moeda bem grande no fundo da gamela. Seu cordão umbilical foi enterrado no
quintal perto de uma árvore de fruta. Como presente dos pais, recebeu uma
medalha da Virgem Maria, acompanhada de uma figa. O corpinho molengo foi imerso
em cachaça misturada com água. Modelaram a cabeça para ficar mais bonita e o
umbigo recebeu pimenta em pó para cicatrizar mais rápido. O pai, Domingos
Borges Barros, que aguardou o parto com paciência na sala de baixo, podia
comemorar.
Aumentara a descendência. Não havia pior castigo do que não
ter filhos. Era a manhã de 13 de Abril de 1816, na cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. O
Brasil ainda não era independente de Portugal. Fazia apenas oito anos que o
futuro João VI tinha passado por ali a caminho da Corte no Rio. A menina passou
a integrar a população de cerca de 55.000 habitantes, entre os quais muitos
estrangeiros. De africanos a americanos. A província era movida basicamente à
produção de açúcar e tabaco. A sua família pertencia a uma sociedade fechada e
patriarcal, onde se conhecia quem tinha fortuna e poder. Onde todos sabiam quem
mandava e quem obedecia.
Pois Luísa ia revirar este mundo de
ponta-cabeça. Não só porque teve uma relação muito especial com Pedro II, mas
porque teve uma relação muito especial com a vida. Devorou-a com apetite. Tomou
o destino nas próprias mãos. Verdadeira camaleoa, Luísa negou-se a ser
prisioneira dos limites de sua época. Preferiu as aventuras do dia-a-dia». In
Mary del Priore, Condessa de Barral, A Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008,
ISBN 978-857-302-923-9.
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