Cur
Non Utrumque
(…)
O tempo urgia, o tempo finava-se, o tempo não perdoa e o do amante de dona Inês
chegara ao fim. Em Estremoz, Pedro adoeceu, cada vez mais imerso naquele torpor
que o postrava, depois de despendidas as suas energias na crueldade, no maníaco
exercício da justiça, nas danças de noites alucinantes com a população e, numa madrugada
invernosa, numa segunda-feira a 18 de Janeiro de 1405, finou-se. Com ele desapareciam os seus terrores mas, como para
se vingar do destino, a imagem de dona Inês sobreviveu-lhe, não o acompanhou na
morte, vive ainda. Ela morrera doze anos e onze dias antes do passamento do rei,
lá longe, para as margens do Mondego. Subia ao trono, rodeado do esplendor do
cerimonial que a Coroa exigia, o novo monarca, Fernando, o homem que escolheria
para divisa dois corações trespassados por uma espada e cuja frase latina
traduzia esse desejo, seu firme desejo de, como o ferro acerado da arma,
trespassar a alma dos outros, e conhecê-la. Para já, o presságio que faria de
um João Rei de Portugal estava longe de se cumprir. Fernando tinha vinte e dois
anos, eu era mais nova. Só o conheci mais tarde, quando minha irmã, mais velha
que eu, depois de enviuvar de Álvaro Dias Sousa, foi para dama da generosa Infanta
dona Beatriz, a amada irmã do novo rei de Portugal.
Do
Sonho e da Guerra
Estava
eu ainda a viver com meus tios, embora já noiva de João Lourenço, quando o novo
rei de Portugal se elevou ao trono. Não o conhecia mas meu tio e irmãos que, ao
longo dos anos vão de visita ao Paço, o tinham já encontrado, falavam dele com
enlevo. Era belo, diziam, rodo atirado ao lado da mãe. Do pai nem sequer
herdara a curta estatura. Era alto, muito alto, branco, de cabelos louros e uns
olhos castanhos fulvos que faziam as damas estremecer. Suscitava paixões. A sua
presença, o seu porte altivo, o seu sorriso quente, transmitiam a todos a funda
sensação de prazer e chegavam a confrontar-se pelo deleite da sua companhia.
Era amado pelas mulheres, galante, já gerara uma filha que se criara, até a altura,
na casa do avô, e patenteava um indesmentível prazer no contacto com as
mulheres. Falava-se à boca pequena de feitiços e práticas misteriosas que algumas
donzelas chegaram a tentar apenas pelo seu sorriso; porém, o rei, nos seus
garbosos vinte e dois anos, atlético, viril, apreciava-as muito mas apenas
tinha duas paixões: a caça e a irmã, aquele ser de eleição, louro, diáfano, o
retrato vivo da mãe na pureza dos traços, que era dona Beatriz. Penso que a
chegastes a conhecer, frei Juan. Fernando sentia pela irmã uma afeição tão
profunda que teria morrido por ela se isso fosse necessário, mas como sempre,
até esse puro sentimento fraternal foi conspurcado pelos nossos inimigos. Além
de Beatriz, existiam mais três irmãos todos bastardos. João, que meu
genro acaba por aprisionar quando pretendeu não ter opositores à sua conquista
do trono português, Dinis, mais novo, assomadiço e violento, os dois o
eram, aliás, e penso que herdaram essa violência do pai. O meu sogro chegava a
ter períodos de tão exacerbada violência verbal e física, que desmaiava e
permanecia durante horas ou dias em profundo estado de letargia, como um morto-vivo.
Era uma forma, creio eu, de reabsorver as energias vitais que despendera. Isso
acabou por o matar. Os filhos, os rapazes que teve de dona Inês, saíram nesse
aspecto ao pai. Beatriz era calma e meiga e Fernando, quanto a ele,
nunca o vi a espumar de raiva como um louco, embora as atribulações da sua
curta vida o tivessem propiciado muitas vezes. Foi precisamente contra Dinis e
a sua cobarde actuação, pois Fernando estava cônscio da sua traição, que o vi
exaltado a ponto de agarrar o punho da adaga contra o irmão.
Depois
voltarei a falar disto. O Infante João foi-me sempre simpático e gentil,
conseguindo dominar a sua propensão para a crueldade, na minha presença, até
aquela noite fatal de Coimbra, naquele Verão odioso de 1417, que nunca mais a minha memória apagarás, até porque algo de
mim, um resquício de remorso, eu sei, também a marcou. Como vedes, meu bom
amigo, sei muitos segredos e guardei alguns crimes meus e dos outros que agora
tenciono revelar pelo amor da verdade, como já vos confessei. O João é apenas
dois anos mais velho do que eu e nasceu, parece-me, perto da minha terra, em
Bragança. Foi o homem que conheci, e toda a Corte, que melhor soube montar e
dominar um cavalo. Era destemido, valente, amigo das alimárias. Os seus dois cães
e as cadelas de criação eram mais importantes que muita gente. Dormia com eles
na cama e até se falou de actos menos próprios pois que ele os praticara com as
cadelas em noites de bebedeira. Não sei se é verdade. Isso enoja-me tanto, e
até pelo facto de ele ter partilhado o leito com a minha irmã, que preferi
sempre não acreditar. Tal como o pai, bebia, cantava, dançava nas ruas e muitas
vezes, a isso assisti eu, depois dos saraus, das cantigas de mal-dizer, dos
cantos de amor e de amigo, das barcarolas e das alvoradas, após as seroadas,
quando os jograis dormitavam pelos cantos, no chão, entre os festos de comida,
já muito bebido, o rosto congestionado, o cabelo revolto, os olhos coruscantes,
alardeando uma força animal que arrastava os companheiros e fazia corar as
donzelas e donas, corria fora das portas dos Paços, com o alaúde, tocava,
cantava, acordava Lisboa adormecida, descia as ruelas tortuosas de Alfama e da
Alcáçova, berrando chistes pelas ladeiras e da Pedreira e pelo arrabalde até à
Rua Nova. Tal qual o pai, o apaixonado Pedro». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor
Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN
942-23-2347-4.
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