sábado, 28 de março de 2015

A Paixão da Memória. O Canto da Salamandra. Leonor Teles. Seomara Ferreira. «Era belo, diziam, rodo atirado ao lado da mãe. Do pai nem sequer herdara a curta estatura. Era alto, muito alto, branco, de cabelos louros e uns olhos castanhos fulvos que faziam as damas estremecer»

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Cur Non Utrumque
(…) O tempo urgia, o tempo finava-se, o tempo não perdoa e o do amante de dona Inês chegara ao fim. Em Estremoz, Pedro adoeceu, cada vez mais imerso naquele torpor que o postrava, depois de despendidas as suas energias na crueldade, no maníaco exercício da justiça, nas danças de noites alucinantes com a população e, numa madrugada invernosa, numa segunda-feira a 18 de Janeiro de 1405, finou-se. Com ele desapareciam os seus terrores mas, como para se vingar do destino, a imagem de dona Inês sobreviveu-lhe, não o acompanhou na morte, vive ainda. Ela morrera doze anos e onze dias antes do passamento do rei, lá longe, para as margens do Mondego. Subia ao trono, rodeado do esplendor do cerimonial que a Coroa exigia, o novo monarca, Fernando, o homem que escolheria para divisa dois corações trespassados por uma espada e cuja frase latina traduzia esse desejo, seu firme desejo de, como o ferro acerado da arma, trespassar a alma dos outros, e conhecê-la. Para já, o presságio que faria de um João Rei de Portugal estava longe de se cumprir. Fernando tinha vinte e dois anos, eu era mais nova. Só o conheci mais tarde, quando minha irmã, mais velha que eu, depois de enviuvar de Álvaro Dias Sousa, foi para dama da generosa Infanta dona Beatriz, a amada irmã do novo rei de Portugal.

Do Sonho e da Guerra
Estava eu ainda a viver com meus tios, embora já noiva de João Lourenço, quando o novo rei de Portugal se elevou ao trono. Não o conhecia mas meu tio e irmãos que, ao longo dos anos vão de visita ao Paço, o tinham já encontrado, falavam dele com enlevo. Era belo, diziam, rodo atirado ao lado da mãe. Do pai nem sequer herdara a curta estatura. Era alto, muito alto, branco, de cabelos louros e uns olhos castanhos fulvos que faziam as damas estremecer. Suscitava paixões. A sua presença, o seu porte altivo, o seu sorriso quente, transmitiam a todos a funda sensação de prazer e chegavam a confrontar-se pelo deleite da sua companhia. Era amado pelas mulheres, galante, já gerara uma filha que se criara, até a altura, na casa do avô, e patenteava um indesmentível prazer no contacto com as mulheres. Falava-se à boca pequena de feitiços e práticas misteriosas que algumas donzelas chegaram a tentar apenas pelo seu sorriso; porém, o rei, nos seus garbosos vinte e dois anos, atlético, viril, apreciava-as muito mas apenas tinha duas paixões: a caça e a irmã, aquele ser de eleição, louro, diáfano, o retrato vivo da mãe na pureza dos traços, que era dona Beatriz. Penso que a chegastes a conhecer, frei Juan. Fernando sentia pela irmã uma afeição tão profunda que teria morrido por ela se isso fosse necessário, mas como sempre, até esse puro sentimento fraternal foi conspurcado pelos nossos inimigos. Além de Beatriz, existiam mais três irmãos todos bastardos. João, que meu genro acaba por aprisionar quando pretendeu não ter opositores à sua conquista do trono português, Dinis, mais novo, assomadiço e violento, os dois o eram, aliás, e penso que herdaram essa violência do pai. O meu sogro chegava a ter períodos de tão exacerbada violência verbal e física, que desmaiava e permanecia durante horas ou dias em profundo estado de letargia, como um morto-vivo. Era uma forma, creio eu, de reabsorver as energias vitais que despendera. Isso acabou por o matar. Os filhos, os rapazes que teve de dona Inês, saíram nesse aspecto ao pai. Beatriz era calma e meiga e Fernando, quanto a ele, nunca o vi a espumar de raiva como um louco, embora as atribulações da sua curta vida o tivessem propiciado muitas vezes. Foi precisamente contra Dinis e a sua cobarde actuação, pois Fernando estava cônscio da sua traição, que o vi exaltado a ponto de agarrar o punho da adaga contra o irmão.
Depois voltarei a falar disto. O Infante João foi-me sempre simpático e gentil, conseguindo dominar a sua propensão para a crueldade, na minha presença, até aquela noite fatal de Coimbra, naquele Verão odioso de 1417, que nunca mais a minha memória apagarás, até porque algo de mim, um resquício de remorso, eu sei, também a marcou. Como vedes, meu bom amigo, sei muitos segredos e guardei alguns crimes meus e dos outros que agora tenciono revelar pelo amor da verdade, como já vos confessei. O João é apenas dois anos mais velho do que eu e nasceu, parece-me, perto da minha terra, em Bragança. Foi o homem que conheci, e toda a Corte, que melhor soube montar e dominar um cavalo. Era destemido, valente, amigo das alimárias. Os seus dois cães e as cadelas de criação eram mais importantes que muita gente. Dormia com eles na cama e até se falou de actos menos próprios pois que ele os praticara com as cadelas em noites de bebedeira. Não sei se é verdade. Isso enoja-me tanto, e até pelo facto de ele ter partilhado o leito com a minha irmã, que preferi sempre não acreditar. Tal como o pai, bebia, cantava, dançava nas ruas e muitas vezes, a isso assisti eu, depois dos saraus, das cantigas de mal-dizer, dos cantos de amor e de amigo, das barcarolas e das alvoradas, após as seroadas, quando os jograis dormitavam pelos cantos, no chão, entre os festos de comida, já muito bebido, o rosto congestionado, o cabelo revolto, os olhos coruscantes, alardeando uma força animal que arrastava os companheiros e fazia corar as donzelas e donas, corria fora das portas dos Paços, com o alaúde, tocava, cantava, acordava Lisboa adormecida, descia as ruelas tortuosas de Alfama e da Alcáçova, berrando chistes pelas ladeiras e da Pedreira e pelo arrabalde até à Rua Nova. Tal qual o pai, o apaixonado Pedro». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT