sexta-feira, 20 de março de 2015

O Amor nos Tempos de Cólera. Gabriel Garcia Márquez. «O quarto sufocante e salpicado de cores, que servia ao mesmo tempo de alcova laboratório, mal começava a se iluminar com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas era luz bastante para proclamar de pronto a autoridade da morte»

jdact

«Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino o sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada em sombras, à qual chegara acudindo a chamado de urgência para se ocupar de um caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano Jeremiah Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação de cianeto de ouro. Encontrou o cadáver coberto com uma manta no catre de campanha onde sempre dormira, perto de um tamborete com a vasilha que havia servido para vaporizar o veneno. No chão, amarrado ao catre, estava o corpo estendido de um grande dinamarquês preto de peito nevado, e junto a ele estavam as muletas. O quarto sufocante e salpicado de cores, que servia ao mesmo tempo de alcova laboratório, mal começava a se iluminar com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas era luz bastante para proclamar de pronto a autoridade da morte. As outras janelas, assim como todas as frestas do aposento, estavam amordaçadas com trapos ou seladas com papelão preto, o que aumentava a sua densidade opressiva. Havia uma mesa grande atulhada de frascos e vidros bojudos sem rótulo, e duas vasilhas de estanho descascado sob um foco de luz ordinário coberto de papel vermelho. A terceira vasilha, a do líquido fixador, era a que estava junto do cadáver. Havia revistas e jornais velhos em todos os cantos, pilhas de negativos em placas de vidro, móveis quebrados, mas tudo estava preservado da poeira por mãos diligentes. Embora o ar da janela tivesse purificado o ambiente, ainda persistia para quem soubesse identificá-lo o rescaldo morno dos amores sem ventura das amêndoas amargas. O doutor Juvenal Urbino havia pensado mais de uma vez, sem ânimo premonitório, que aquele não era um lugar propício para se morrer na graça de Deus. Mas com o tempo acabou por supor que a sua desordem obedecia talvez a uma determinação cifrada da Divina Providência.
Um comissário de polícia havia-se adiantado com um estudante de medicina muito moço que fazia a sua prática forense no dispensário municipal, e eles é que haviam arejado o aposento e coberto o cadáver enquanto chegava o doutor Urbino. Ambos o cumprimentaram com uma solenidade que dessa vez tinha mais de condolência que de veneração, pois ninguém ignorava o grau da sua amizade com Jeremiah Saint-Amour. O mestre eminente apertou a mão de ambos, como jamais deixava de fazer com cada um de seus alunos antes de começar a aula diária de clínica geral, e depois segurou a beira da manta com as pontas do índice e do polegar, como se fosse uma flor, e descobriu o cadáver palmo a palmo com uma parcimónia sacramental. Estava nu em pêlo, teso e torto, com os olhos abertos e o corpo azul, e parecia cinquenta anos mais velho do que na noite anterior. Tinha as pupilas diáfanas, a barba e os cabelos amarelados, e o ventre atravessado por uma cicatriz antiga costurada com nós de ensacador. O trabalho das muletas tinha dado uma envergadura de galeote ao seu torso e aos seus braços, mas as pernas inermes eram as de um órfão. O doutor Juvenal Urbino o contemplou um instante com o coração doendo, como poucas vezes nos longos anos de sua contenda estéril contra a morte. Poltrão, disse a ele. O pior já tinha passado. Voltou a cobri-lo com a manta e recuperou a sua postura académica. No ano anterior celebrara seus oitenta com um jubileu oficial de três dias, e no discurso de agradecimento resistiu uma vez mais à tentação de se aposentar. Havia dito: Terei tempo de sobra para descansar quando morrer, mas essa eventualidade não figura ainda nos meus projectos. Embora ouvisse cada vez menos com o ouvido direito e se apoiasse numa bengala com castão de prata para dissimular a incerteza dos seus passos, continuava usando com a compostura dos seus anos moços o terno completo de linho com o colete atravessado pela corrente de ouro. A barba de Pasteur, cor de nácar, e o cabelo da mesma cor, muito bem alisado e com o repartido nítido no centro, eram expressões fiéis do seu carácter. Até onde podia, compensava a erosão cada vez mais inquietante da memória com notas escritas às carreiras em papelinhos avulsos, que acabavam por se confundir em todos os seus bolsos, assim como os instrumentos, os vidros de remédio, e outras tantas coisas embaralhadas na maleta atulhada. Não era só o médico mais antigo e esclarecido da cidade, como também o homem mais atilado. Apesar disso, a sua sapiência demasiado ostensiva e o modo nada ingénuo que tinha de manejar o poder do próprio nome acabaram por lhe valer menos afectos do que merecia.
As instruções ao comissário e ao praticante foram precisas e rápidas. Não haveria autópsia. O cheiro da casa bastava para determinar que a causa da morte tinham sido as emanações do cianeto activado na vasilha por algum ácido de fotografia, e Jeremiah Saint-Amour entendia muito do assunto para não fazê-lo por acidente. Diante de uma reticência do comissário, deteve-o com uma estocada típica do seu modo de ser: Não se esqueça de que sou eu quem assina o atestado de óbito. O médico jovem ficou decepcionado: nunca tinha tido a sorte de estudar os efeitos do cianeto de ouro num cadáver. O doutor Juvenal Urbino tinha ficado espantado de não havê-lo visto na Escola de Medicina, mas compreendeu de pronto ao notar seu rubor fácil e seu sotaque andino: era sem dúvida um recém-chegado à cidade. Disse: Não faltará por aqui algum louco de amor que lhe dê a oportunidade um dia destes. E só ao dizê-lo percebeu que entre os incontáveis suicídios que lembrava, aquele era o primeiro com cianeto que não tinha sido causado por um infortúnio de amor. Algo se alterou então na sua maneira de falar». In Gabriel Garcia Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985, Editora Record, 2011, ISBN 850-102-872-X.

Cortesia de ERecord/JDACT