«(…)
A materialização selecta de recursos contemporâneos é engendrada pelo poeta
sempre de maneira pautada e fluida. Analisemos, pois, o seu poema Tal
como antigamente:
«Tal
como antigamente tal como agora
essa
estrela esse muro
esse
lento
esse morto
sorrir
nenhum
acaso
nenhuma
porta
impossível sair».
(1974)
Apesar
de serem frequentes em Ramos Rosa imagens que remetem à
claridade, ao sol e, consecutivamente, à vontade de vida, temos um poema de
flagrante desistência. Entretanto, mesmo a imagem desta desistência é
constituída através da deformação do sorriso, não de uma lágrima. Tal inversão,
e o consequente embate entre o resultado que o signo é capaz de produzir e o
seu suposto conteúdo, quando retirado de uma situação poética, suscita à poesia
de Rosa lugares inesperados. Tão
importante é, também, a associação da palavra estrela com a palavra muro,
que, num primeiro momento, caso descontextualizadas, parecem evocar ideias
opostas. A primeira despontaria abstração, infinitude, liberdade; enquanto a
segunda, as qualidades do concreto, do palpável, dos limites. Contudo, o muro deste quadro traduz a
impossibilidade, o obstáculo insuperável, isto é, a distância inexequível da
estrela à nossa presença, ao nosso entendimento. Estamos, portanto, encontrando
a metáfora motivada por outra, conjunto e subconjunto de imagens perfazendo o
resultado poético. O verso livre, muito afamado como recurso típico da
transformação moderna, é aproveitado, então, por meio de uma técnica bem
desenvolvida e marcante em nosso poeta: o corte. É este que proporciona
boa parte do inusitado e da sobrevalorização das palavras em Ramos
Rosa. Examinemos assim, como essa
estrela e esse muro permanecem no
mesmo verso, sem cortes, e o efeito se torna, ao mesmo tempo, a concepção
imagética que analisamos e o impulso primeiro para a sequência de paralelos que
estão por vir. Não obstante, logo esse impulso é dado e os cortes relevam
adjetivos: lento, morto, antes de, fundamentalmente,
apresentar a energia contraditória de sorrir.
É
ainda a mesma técnica que propicia o elegante emparelhamento de acaso e porta, como de igual jeito entremete surpresa na solução do último
verso. Outro poema pertinente à nossa análise é aquele que, muito
contemporaneamente, faz arte literária com o enfado rotineiro de um funcionário
desacertado à sua trivialidade:
«A
noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me
os amigos
tenho
o coração confundido e a rua é estreita
estreita
em cada passo
as
casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com
os sonhos trocados
com
toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou
um funcionário apagado
um
funcionário triste
a
minha alma não acompanha a minha mão
Débito
e Crédito Débito e Crédito
a
minha alma não dança com os números
tento
escondê-la envergonhado
o
chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e
debitou-me na minha conta de empregado
Sou
um funcionário cansado dum dia exemplar
Por
que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por
que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro
velhas palavras generosas
Flor
rapariga amigo menino
irmão
beijo namorada
mãe
estrela música
São
as palavras cruzadas do meu sonho
palavras
soterradas na prisão da minha vida
isto
todas as noites do mundo numa só noite comprida
num
quarto só».
(1974)
Muito possivelmente existe inspiração de semente brasileira neste
poema. Carlos Drummond Andrade já se havia tornado, em tempos anteriores à data
de estreia de Ramos Rosa com O Grito Claro (1958),
um recorrente poeta do tema que deu origem ao Poema dum funcionário cansado. Porém, podemos arriscar,
baseados numa admiração exposta em poesia, que estamos de frente à influência,
principalmente, do autor dos memoráveis versos: eu sou triste como um
prático de farmácia,/ sou quase tão triste como um homem que usa costeletas./
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher/ mas só ouço o tectec das
máquinas de escrever» In In Daniel Gil, Ramos Rosa. Funcionário Incansável das
Palavras, Murilo Mendes, 1994, Vértices, Campos dos Goytacazes/RJ,
volume 12, n.º 2, Brasil, 2010, Wikipedia.
Cortesia de Vértices/JDACT