domingo, 15 de março de 2015

Ramos Rosa. Funcionário Incansável das Palavras. Daniel Gil. «… eu sou triste como um prático de farmácia,/ sou quase tão triste como um homem que usa costeletas./ Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher/ mas só ouço o tectec das máquinas de escrever…, sorrir nenhum acaso nenhuma porta impossível sair»

Cortesia de wikipedia

«(…) A materialização selecta de recursos contemporâneos é engendrada pelo poeta sempre de maneira pautada e fluida. Analisemos, pois, o seu poema Tal como antigamente:

«Tal como antigamente tal como agora
essa estrela esse muro
esse lento
esse morto
sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair».
(1974)

Apesar de serem frequentes em Ramos Rosa imagens que remetem à claridade, ao sol e, consecutivamente, à vontade de vida, temos um poema de flagrante desistência. Entretanto, mesmo a imagem desta desistência é constituída através da deformação do sorriso, não de uma lágrima. Tal inversão, e o consequente embate entre o resultado que o signo é capaz de produzir e o seu suposto conteúdo, quando retirado de uma situação poética, suscita à poesia de Rosa lugares inesperados. Tão importante é, também, a associação da palavra estrela com a palavra muro, que, num primeiro momento, caso descontextualizadas, parecem evocar ideias opostas. A primeira despontaria abstração, infinitude, liberdade; enquanto a segunda, as qualidades do concreto, do palpável, dos limites. Contudo, o muro deste quadro traduz a impossibilidade, o obstáculo insuperável, isto é, a distância inexequível da estrela à nossa presença, ao nosso entendimento. Estamos, portanto, encontrando a metáfora motivada por outra, conjunto e subconjunto de imagens perfazendo o resultado poético. O verso livre, muito afamado como recurso típico da transformação moderna, é aproveitado, então, por meio de uma técnica bem desenvolvida e marcante em nosso poeta: o corte. É este que proporciona boa parte do inusitado e da sobrevalorização das palavras em Ramos Rosa. Examinemos assim, como essa estrela e esse muro permanecem no mesmo verso, sem cortes, e o efeito se torna, ao mesmo tempo, a concepção imagética que analisamos e o impulso primeiro para a sequência de paralelos que estão por vir. Não obstante, logo esse impulso é dado e os cortes relevam adjetivos: lento, morto, antes de, fundamentalmente, apresentar a energia contraditória de sorrir.
É ainda a mesma técnica que propicia o elegante emparelhamento de acaso e porta, como de igual jeito entremete surpresa na solução do último verso. Outro poema pertinente à nossa análise é aquele que, muito contemporaneamente, faz arte literária com o enfado rotineiro de um funcionário desacertado à sua trivialidade:

«A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só».
(1974)

Muito possivelmente existe inspiração de semente brasileira neste poema. Carlos Drummond Andrade já se havia tornado, em tempos anteriores à data de estreia de Ramos Rosa com O Grito Claro (1958), um recorrente poeta do tema que deu origem ao Poema dum funcionário cansado. Porém, podemos arriscar, baseados numa admiração exposta em poesia, que estamos de frente à influência, principalmente, do autor dos memoráveis versos: eu sou triste como um prático de farmácia,/ sou quase tão triste como um homem que usa costeletas./ Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher/ mas só ouço o tectec das máquinas de escrever» In In Daniel Gil, Ramos Rosa. Funcionário Incansável das Palavras, Murilo Mendes, 1994, Vértices, Campos dos Goytacazes/RJ, volume 12, n.º 2, Brasil, 2010, Wikipedia.

Cortesia de Vértices/JDACT