Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) A vitória da revolução traduziu-se em alterações de tal modo
profundas que Fernão Lopes, às Seis Idades vividas até então pelo Homem em
sociedade (segundo a ideologia que bebia em Eusébio e Beda), acrescenta como
quem jogueta, uma Sétima Idade,
aberta pelos feitos que rodearam a eleição do Mestre de Avis como rei de
Portugal. Luís Sousa Rebelo vê nesta Sétima Idade um momento fundamental do tal
plano providencial, mas, em nossa opinião, o jogueta e a afirmação de que tais
falamentos pouca parte têm de verdade revelam um Fernão Lopes ultrapassando
visões que vinham muito de trás e a servir-se dos passos ideológicos como quem
se serve de passos bíblicos para tornar mais salientes as alterações sociais e
políticas operadas com o levantamento de Lisboa e os acontecimentos que designamos
corno revolução de 1383. Ao interpretar e ordenar os acontecimentos,
uma mentalidade nova rasga preconceitos estabelecidos. Assim, ao narrar a batalha
da Ribeira do Tejo durante o cerco da cidade de Lisboa, depois de louvar
dois combatentes, escreve: Não
entendais vós porém que eles sós defendiam as galés sem outro pelejar por as defender.
E na batalha de Aljubarrota: Ali
se acendeu uma forte e crua batalha, ferida de golpes quais os homens têm em
costume de dar, e não quejandos alguns escrevem. Para que diremos golpes nem
forças nem outras razões compostas por louvor de alguns nem afremosentar
história que os sisudos não hão de crer, de guisa que de histórias verdadeiras
façamos fábulas patranhosas? Abasta que duma e doutra eram dados tais e
tamanhos golpes como cada um melhor podia apresentar àquele que lhe caia em
sorte; de guisa que os muitos por subjugar, e os poucos, por se verem isentos
de seus inimigos, lidavam com toda sua força. Quando escreve a ladainha
dos heróis de 1383-1385, Fernão Lopes segue não a ordem da fidalguia mas como a mão quiser mover a pena.
A chefia militar aparece deste modo no combate da Ribeira do Tejo:
Bradava o Mestre que fizessem algumas
cousas que via que cumpriam, trigosamente. E o grande arroido das gentes e som
das armas com que pelejavam, empachava tanto seu mandado que parecia que
mandava em vão. Esta passagem lembra o comando de Kuznetsov na batalha de
Austerlitz pela pena de Leão Tolstoi. E a acentuar mais este mandar em vão: O Mestre andava a cavalo pela ribeira, como
dissemos, fazendo entrar as gentes nas galés, metendo-se no mar com
afincamento; e na água veio um virotão e deu-lhe na espádua do cavalo, e o
cavalo, sentindo-se ferido, caiu logo com ele na água. E foi o Mestre sob a água,
armado como andava, com bacinete sem cara, e a gente que era toda ocupada cada
um onde melhor podia, não o viram. E sem sendo acorrido de nenhum, quando se
sentiu sob a água fora da besta, pôs as mãos nos joelhos e alçou-se em pé, e achou-se
tão alto que lhe dava a água por sob a barba.
A obra de Fernão Lopes encontra-se na fronteira entre a prática da
leitura individual e a da leitura para o colectivo: se sois bem lembrado do que tendes lido; vós todos ouvis e nenhum não pergunta. Como vimos também, Fernão
Lopes conheceu a diferença entre o acontecido e a narração do acontecido. E ao
descrever os sofrimentos da Lisboa cercada, insiste na diferença entre
ouvir/ler e sofrer: que tanta diferença
há de ouvir cousas àqueles que as então passaram como há da vida à morte. Se
interrogássemos o autor da Crónica de D. Pedro sobre se a
História cumpriria um projecto divino, responderia obviarnente: Muito alto senhor Deus, que em sua
providência nenhuma cousa falece, que tinha disposto de o Mestre ser rei, ordenou
que não matasse [o Andeiro] outro senão ele. Mas joguetando: não foi afinal o bom do Rui Pereira que terminou com a vida do conde?
E se plano obviamente havia, se Deus criou todas as idades, do postumeiro dia bem como do plano,
dizemo-lo com ousança de falar, nenhum era sabedor. Indicamos atrás
conhecimentos epistemológicos, distinção do acontecido e narração do
acontecido, etc., que estão hoje na ordem do dia. Mas Fernão Lopes sem
mencionar mais autores, isto é, sem designar as suas fontes, levanta em breves,
expressivas e saborosas palavras aquilo que Espinosa designaria como modos
de conhecer. Conhecer é revelar-se
e são quatro os modos das revelações: dois corporais e dois espirituais.
Os corporais são da parte de fora, os espirituais da parte da alma. O modo
primeiro corporal é quando os olhos corporais são abertos a ver o céu e a terra
e outras cousas; esta revelação ou demonstração não é perfeita, porquanto por
ela não alcançamos as virtudes das cousas que vemos. O segundo quando vemos a de
fora cousa que tem mistério de dentro, assim como Moisés, que viu arder o
espinheiro por que se mostrava a encarnação do Filho de Deus». In
António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção
Universitária, 1984.
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