Ela.
Sinfonia nº 2 de Felix Mendelssohn
«(…) Agathe: 1,68
metro, magra, mas cheinha onde era preciso. Pele branca, olhos azuis,
cabelos sempre mais louros graças aos champô de camomila. Trigo suave, trigo de
primavera. A pequena: 1,53 metro; mas
nada estava perdido, afinal as meninas crescem até à primeira menstruação,
podendo inclusive ganhar 2 centímetros depois. Olhos verdes salpicados de amarelo,
bronzeado tórrido ao primeiro beijo do sol. Dá
vontade de apertar, resumia o meu pai, mergulhando nas minhas bochechas. Farinha de centeio, pão preto. A
bela era Agathe. Mas o que é
mesmo a beleza? De onde vinha
a diferença? Nas palavras da família, eu tinha olhos magníficos, meu
nariz era rectilíneo, e os meus dentes, impecáveis depois do aparelho. Quanto
aos cabelos, eram dez vezes mais volumosos que a palha dourada de Agathe. Sua
irmã chama a atenção!, exclamara um dia um colega. Pois bem, eu não
chamava. Era por isso que, em Deauville, quando passeávamos pelo cais, ainda que
eu fosse a mais bronzeada e fizesse o possível para me fazer notar, os garotos
se viravam para ela e assobiavam. Era por essa razão que eles queriam levá-la a
todos os lugares, aos bares, ao cinema, ao baile, usando o carro dos pais para desfilar
na sua companhia. E, finalmente, talvez fosse também um pouco por esse motivo
que eu preferia ficar lendo na cama em vez de assistir aos seus truques para
fazê-los pagar as bebidas para ela, enquanto as minhas eu tinha que pagar do
meu próprio bolso. Não havia motivo algum para fazer um discussão. Aliás, a tia
Jeannette dissera que eu não era de se jogar fora, e até ficava um pouco melhor
quando me esforçava para sorrir diante do espelho e os meus olhos amarelos cintilavam. E, em Villedoye, havia
uns verdadeiros dragões: Babet com as nádegas caída, a pobre
Joséphine-lábio-leporino e Irene, cujos olhos nenhum médico conseguira colocar
no lugar.
Entre na dança, veja como se dança.
Pule, dance, beije quem você quiser.
No
que se referia ao quem você quiser,
era mais fácil na canção do que na prática. Sem dúvida foi por causa da
comparação entre o lírio e a flor silvestre que resolvi chamar atenção à minha
maneira. Não fiz o curso normal, consegui um diploma de inglês e, graças à
minha preferência pela leitura, formei-me em letras com louvor. Em seguida,
deixei o mar e fui-me instalar em Paris, onde trabalho com música e danço com
os grandes.
Cheguei de ressaca à Agência hoje de manhã, pois ontem fui
comemorar os meus 26 anos com alguns amigos num bar. Dormir às três da manhã no
meio da semana não tem nada de mais quando a data é importante, e, em todo
caso, ganhara 4 centímetros depois dos meus 13 anos... Não podia deixar de
comemorar isso! A Agência era como chamávamos carinhosamente os nossos 200
metros quadrados de escritório nas proximidades dos Champs-Élysées, onde
a nossa equipa de assessores de imprensa trabalhava muito para promover cantores
talentosos e promissores. Os nossos clientes eram editoras de discos
sobrecarregadas e também músicos independentes, que deduzem que a fama demora
demais a estender as asas sobre as suas cabeças. Para ajudá-los, assediávamos
os jornais, as rádios e as emissoras de TV. Organizávamos entrevistas e colectivas,
planeávamos viagens e às vezes os acompanhávamos. Amava esse trabalho, que me
fazia esquecer da hora e me permitia conviver com essas pessoas curiosas que chamamos
de artistas, muitas vezes caricatas, porém quase nunca desinteressantes,
dispostas a morrer para serem reconhecidas. Além do mais, sempre gostei de
música, tanto a denominada clássica
quanto a pop, do violoncelo ao
acordeão. Ela transforma a dor em poesia e, às vezes, o
infortúnio em ópera. Impossível viver sem ela. Imaginam um mundo sem passarinhos?
No
dia seguinte ao meu aniversário, estava ao telefone, um pouco cansada apesar do
expresso duplo que bebera, perturbando um jornalista, quando alguém bateu no
vidro da minha sala e avisou que o chefe estava chamando-me. Henri Desjoyaux,
fundador da Agência, que tem apenas 35 anos, é um bonitão com dentes grandes. Faz
questão de que o chamemos pelo nome e trabalhemos todos juntos, uns colaborando
com os outros. Havia um homenzinho com ele: na casa dos 50, terno com colete,
cabelos cheios e grisalhos e um olhar fulminante por trás das grossas lentes
dos óculos. Laura, apresento-lhe um grande amigo meu: David May. Com a sua mão
pequena e cabeluda, ele triturou os meus dedos. Pode-me chamar de David, já
que, pelo visto, a Laura vai salvar-nos!, declarou o homenzinho com voz áspera.
Voltei a minha atenção para Henri, que me esclareceu: David é o agente de Claudio
Roman. Claudio Roman é um tenor tão célebre na França quanto no estrangeiro. É
tão disputado que não é preciso bajular a imprensa para promovê-lo. Segundo os
boatos, é também um sedutor e um grande crápula. Se não me engano, não está
longe dos 40 anos. Além disso, é cego».
In
Janine
Boissard, Pela Luz dos Olhos Seus, 2003, Editora Arqueiro, 2013, tradução de
André Teles, ISBN 978-858-041-211-6.
Cortesia
EArqueiro/JDACT