A história faz-se (ou da prática actual dos profissionais de história).
Antes de Abril de 1974
(…) O documento tornava-se pois um fim em si próprio, o santo dos santos de um ritual
litúrgico. O fim dos investigadores satisfeitos com a caça documento não visava
a descoberta das estruturas, das relações e mesmo das leis sociais, mas a
recolha, no melhor dos casos piedosa, inestimável por certo, por vezes crítica
quanto à forma, mas eriçando contudo a análise do conteúdo de dificuldades
inefáveis. E quem ousasse lê-los, afrontar a sua luz, errando e vendo, era como
o sacrílego que pretendesse destapar o ignoto, mostrar a carne oculta e pálida
do Senhor. Esta a prática de grupo. Ela favorecia as manhas do rato erudito
incapaz do olhar largo, aberto para o todo, procurando pavonear-se com o colar
desirmanado dos factos. Facilitava ainda o jogo rasteiro dos sonegadores de documentos,
dos recolectores impotentes que os escondem e destroem, tudo menos confessar a
sua impotência não só da leitura material como da leitura profunda. O ataque à
prática do ritual de que o documento se tornou o santo dos santos não intenta
beliscar no mínimo a necessidade da recolha e descoberta de novos documentos e
a de seguir rigorosamente as regras conhecidas e inventar outras sobre a crítica
interna e externa dos documentos. Esta tarefa é tão indispensável e construtiva
como o trabalho quotidiano. Do barro dos documentos se cozem os tijolos dos
acontecimentos que o são verdadeiramente quando participam na obra global,
quando se integram na estrutura do edifício. Mas como ligar os tijolos, como sustê-los no ar para que suportem a
abóbada? Que princípios, que conceitos, que técnicas, permitem o milagre da contradição da sua construção
e da sua força sustentadora de homens
e de pesos?
Falei do culto exterior do documento mas, para lá das aparências, o que
se passava realmente com o património
cultural do nosso Povo? Diariamente às mãos da incúria, do desleixo, da
prepotência, da excelsa propriedade privada desapareciam, e desaparecem,
documentos inestimáveis para o conhecimento da história do povo português, uns
destruídos, outros roubados e vendidos, cedo sumidos no estrangeiro, perdidos
como documentos porque perdidas as circunstâncias da sua origem e do seu
contexto e, portanto, reduzidos agora a meros objectos raros, a moeda, estado
hipócrita: por um lado, enaltecia em palavras os valores do espírito; por outro
deixava arquivos como o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cujo espólio é pelo
menos tão valioso como o ouro do Banco de Portugal, nas suas velhas, perigosas
e provisórias instalações enquanto os bancos erguiam para si próprios palácios
e palácios de betão e vidro. A qualidade geral do ensino mantém uma relação
estreita com a qualidade da investigação. Ao nível universitário, os profissionais
docentes constituíram um autêntico corpo sacerdotal hierarquizado, empenhado em
transmitir o que estava morto (as violações confirmam a regra), o deus morto no
passado remoto, demarcando as fronteiras legais,
da relacionação permitida, já feita, válida uma vez por todas como o Livro
Sagrado.
Rejeitava-se, portanto, e a exemplo da investigação, tudo o que não se
confinava no horizonte legal: postergava-se a História Moderna e Contemporânea
bem como o ensino das ciências sociais. As aulas magistrais, poucas e quase
sempre sem grande magistério, inseriam-se num discurso destinado a gravar cassettes que reproduzissem a voz do
dono em milhares de vozes mecânicas. Do interesse apaixonante desse ensino daremos um só exemplo: na História da
Expansão Portuguesa o que interessava era saber quando e qual o proprietário do
pé que calcara tal ou tal cabo africano, deixando na sombra toda a riqueza das
nossas obras literárias e científicas bem como a riqueza dos laços comerciais e
humanos, estabelecidos com as populações contactadas. Mas, a partir da
década de 60, o movimento estudantil ganhou amplitude. Vimos por isso
acentuar-se, dentro da própria Universidade, uma luta surda entre a história oficial
e uma nova história aberta às ciências sociais, a qual, reprimida embora, se
manifestava e se impunha. Esta luta marcou uma geração que haveria de ter um
papel importante nos acontecimentos que
ocorreram em Portugal depois de Abril de 1974». In António Borges Coelho,
Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção
Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.
Cortesia de Caminho/JDACT