«O telefone soou ao fim da tarde
de terça-feira, no preciso momento em que as irmãs da Santa Cruz davam graças
ao Senhor pelo jantar, ao redor das duas grandes mesas de carvalho do salão de
refeições do retiro, depois das Vésperas. Deixaram tocar até se finar e
prosseguiram a oração, pois nada era mais prioritário que o vínculo sagrado com
Deus. Que o Rei da eterna glória nos faça participantes
da mesa celestial,
agradeceu a irmã Bernarda, nascida Mia, a quem se juntou o coro de irmãs de
cabeça abaixada e olhos fechados. Ámen. A refeição era
frugal e comeu-se em silêncio, como tudo o que se fazia no retiro. O lema Nunca dizer nada. Observar tudo, era
seguido em todas as ocasiões. Existiam para servir em silêncio, sem olhar a
quem, embora ali, no sopé sul das Dolomitas, não se abrisse a porta a qualquer
um. A lareira aquentava o salão do retiro com o crepitar indolente da lenha que
se consumia, enquanto, lá fora, os flocos de neve se amontoavam pelo quarto dia
consecutivo. Era o primeiro grande nevão do ano e iria cobrir toda a região com
um manto branco. Os talheres também colaboravam com as sagradas premissas
silenciosas da ordem e não se manifestavam em tilintares acima de um parco
decibel, semelhante a um cicio. Ninguém mais se lembrara do telefone que tocara
durante a oração de graças pelo jantar até ele tornar a soar, estridente,
perturbando a degustação do prato de carne
salada,
regado com um fio de azeite e vinagre de vinho e acompanhado com pão integral. Foi
a irmã Bernarda, nascida Mia, quem se levantou para o atender. Recuou a cadeira
o mais placidamente possível e avançou em passinhos de lã para o aparelho,
pousado em cima de uma mesa encostada a um canto da parede do salão, que
agredia o ar com o seu toque estridente. A irmã Bernarda fizera os votos perpétuos
havia pouco mais de um mês, no dia do seu vigésimo terceiro aniversário,
aceitando servir a Jesus Cristo enquanto houvesse vida no seu corpo. Acabara-se
a vida de luxo de Mia Gustaffsen, filha de um banqueiro suíço do cantão de
Zurique, as viagens, as jóias na 5.ª Avenida, as compras em lojas caras em
Regent Street, os vestidos, os perfumes na avenue Montaigne ou na George V, as
malas e os sapatos na Via Monte Napoleone, os cruzeiros, os safaris, os
namorados. Escolhera o nome Bernarda para honrar a prioresa que fundara a ordem
das irmãs da Santa Cruz, em 1844, o
que, entre as outras, pareceu uma escolha presunçosa.
Havia muitas Anas, Marias de
Jesus, Teodósias, mas Bernarda só houvera uma, até então. As outras irmãs
continuaram a comer os finos pedaços de carne de alcatra crua, imunes ao
telefone que não se rendia, à espera que a irmã Bernarda o atendesse. Murmurou
algumas palavras em alemão e acercou-se da prioresa no topo da mesa. É uma
chamada de Roma, prioresa, sussurrou-lhe ao ouvido. A prioresa levantou-se
imediatamente e foi atender. Roma vinha logo a seguir a Deus na lista das
prioridades. Assim que ela se levantou todas as irmãs de ambas as mesas
pousaram os talheres. A irmã Bernarda voltou para o seu lugar e, tal como as
outras, aguardou que a madre regressasse. Nesta ordem, e em todas, o topo da
hierarquia era respeitado como se de Deus se tratasse… ou de Roma. O
interlocutor era nada mais nada menos do que o secretário pessoal de Sua
Santidade, Giorgio, ou Bel
Giorgio,
como os italianos lhe chamavam, o que fez a prioresa ficar em sentido por ele ser
quem era e ter a importância que tinha e por uma chamada daquelas raramente ou
nunca acontecer. As instruções que o secretário pessoal lhe dera, no seu
sotaque de Baden, em nome do Santo Padre, eram simples: um certo monsenhor
Stephano Lucarelli apresentar-se-ia no retiro das irmãs da Santa Cruz, em Trento,
nos próximos dias. Era de esperar que fosse instalado num dos aposentos do
andar superior, alocado à madre superiora, à cónega e à alta hierarquia de
Roma, quando ali vinha repousar e, rezava o cânone, não devia privar com os
simples curas que também escolhiam aquele local alpino e que ficavam alojados
nos andares inferiores. Essa alta hierarquia romana raramente aparecera por ali
nas últimas décadas. Durante a estada do supracitado monsenhor, o acesso
interior ao terceiro piso, o último, pela escadaria geral estaria interditado.
Seguramente que o requerente, ou alguém por ele, conhecia muito bem o antigo e
imponente retiro, pois sabia que o acesso ao terceiro andar se fazia por duas
escadarias: a geral, que percorria todo o edifício, e dava acesso a todos os
andares, e outra que ligava directamente o terceiro andar ao exterior, sem
desvios de permeio.
Mais:
deviam disponibilizar o lugar na garagem exclusiva, e as refeições, se
solicitadas, deveriam ser deixadas à porta dos aposentos do monsenhor
Lucarelli, que estaria em descanso absoluto por ordem explícita do Santo Padre.
Nenhuma irmã ou qualquer outra pessoa deveria arrumar os aposentos a não ser
que tal lhe fosse solicitado. A mais importante de todas as recomendações,
depois da de manter o monsenhor afastado de todos os outros hóspedes, era que
não se registasse qualquer menção à sua estada, entrada ou saída. Nada.
O retiro estava cheio de hóspedes, das mais variadas nacionalidades, que vinham
gozar umas merecidas semanas de descanso. Com mais de um século de existência,
o retiro das irmãs da Santa Cruz, no Monte Bondone, era uma estância de férias
para padres e religiosos. Apesar da sua ocupação regular, os períodos mais preenchidos
eram o Inverno e a Primavera. Os servidores da Igreja aproveitavam para
conversar, confraternizar com colegas, amigos do ofício, meditar, orar em
grupo, combinar peregrinações, fazer caminhadas quando o tempo consentia,
cantar a beleza da Criação e, claro, esquiar. Podiam fazê-lo livremente, à sua
inteira responsabilidade, ou contratar um monitor que os ensinasse. Se alguns
não se importavam de arrumar o hábito e o cabeção durante alguns dias, outros
não conseguiam separar-se deles, daí que fosse surrealista observar cardeais,
bispos, frades ou freiras com eles vestidos a deslizar pela colina abaixo com
os esquis debaixo dos pés. Havia entre eles insignes esquiadores, propensos, se
tivesse sido essa a Sua vontade, a participar numa qualquer prova digna das
olimpíadas de Inverno. Outros representavam um verdadeiro perigo público com
aquelas pranchas deslizantes descontroladas». In Luís Miguel Rocha, A Filha do
Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.