«Condessa. Você sabe quem ocupou completamente meu coração.
Que culpa tenho eu de que ainda está me dizendo que é verdadeiramente seu, e
creia que o ano que começa há de ser como os outros de quem lhe quer como você
nem imagina e pede-lhe cada vez mais o consolo de suas cartas [...] Deveras
você é digna de tanta afeição e fique persuadida que tudo nela é no supra-sumo.
Desculpe-me falar assim porém meu coração é ainda o mesmo e sempre o será por
quem me inspira tais sentimentos. Diga-me se alguém já lhe quis mais do que eu
e se não devemos nos regozijar de tamanha felicidade? Portanto, venham,
venham cartas que amenizem este deserto e humedeçam lábios sequiosos. Não há
leitura, não há estudo que supra a falta de certas cartas. Quem me dera que
assim fosse e que depois me deixasse fazer as pazes com você. Não sei por quê,
porém responda-me a esta pergunta: Como viveria eu sempre activo e animado
sem esta imaginação que tenho e a amizade que lhe consagro? Todo seu». P.
«Quando eu fiz os rabiscos na parede, já era prelúdio da
triste separação. Como você me atormentou então e que lutas e que desesperos.
Prefiro me lembrar de outros tempos felizes de Petrópolis, de nossos longos
passeios e mais do que tudo do Corcovado! Frére Jacques s'est reveillé avec le ding-ding-dong
de la cloche […] Abra sempre à janela às 8 da manhã e diga bom-dia com a
luz à minha casa. Adeus meu amigo do meu coração». C. de Barrar
«Petrópolis. Sábado. Final de tarde na rua Bourbon. Pela
janela do chalé viam-se floridos arbustos de hortênsias. Na passagem para
deitar-se atrás da serra dos Órgãos, o sol tinha deixado um rastro lilás. A
sombra das nuvens manchava os tectos de zinco do casario adjacente. Um canário
cantava na gaiola na varanda e, longe, da cozinha, vinha o barulho das panelas.
Era a hora do chá e de acender as lamparinas. A casa estava silenciosa. No chão
esteirado, seus sapatos não faziam ruído. As cortinas da alcova estavam baixas.
Ele gostava de surpreendê-la em seu robe de chambre de rendas, o
corpo desenhado pelas pregas macias do tecido, os braços nus, com um livro
entre as mãos. A massa de cabelos cor de sal e pimenta desmanchava-se sobre os
ombros. Os pézinhos minúsculos contrastavam com o canapé amarelo. Ah! Os pés pequenos
que ele gostava de apertar sob a mesa. A penumbra dava à desordem do quarto uma
atmosfera de sedução. Ela tinha nove anos a mais do que ele. Mas era graciosa,
leve e viva. Parecia uma jovem. Já ele era pesado e austero. Parecia um velho.
Sobre o tampo de mármore do toucador encontravam-se lenços,
rendas, caixas de leques e, amarradas com fita azul, as suas cartas para ela.
Na estante, bibelôs e outros presentes que traziam lembranças: flores secas,
pesos de papel, conchas, a palma benta da Sexta-feira Santa, revistas e livros.
Uma bonita caixa de música deixava escapar uma ária de Tannhauser, uma
das óperas favoritas dela. Para aquele encontro, todos os cuidados haviam sido
tomados. Ele disse, em casa, que iria à estação ver o desembarque dos passageiros
recém-chegados e ouvir tocar a banda de música. Não precisava dar muitas
explicações. O empregado de confiança dele, Rafael, entregou a ela o bilhete
que marcava o encontro. Rafael também o trouxera num discreto tílburi que,
depois de rodar um pouco para enganar o olhar de curiosos, estacionou bem longe
do chalé. Ele e ela eram casados. Casados
com outros. Dois casais, dois culpados e muitos pecados.
As consequências? Gravíssimas,
sobretudo para ela. Afinal, a felicidade conjugal era tarefa feminina. Sobre a
mulher repousava a honra e a perenidade do casal. O adultério feminino
representava uma violação imperdoável à lei. Alegar legítima defesa da honra era justificativa comum para que o marido
traído matasse a esposa e o amante. O crime era considerado admissível, se
cometido por paixão e arrebatamento.
A mancha no nome era terrível. Não faltou quem fizesse a lista das mulheres de
altos personagens, marcadas por certa desenvoltura: A marquesa de A... com o dr. A; A
marquesa de O... com seus próprios cocheiros. Algumas, tementes a Deus,
depois de separadas, declaravam em testamento que, por fragilidade humana, tiveram cópula ilícita durante o casamento.
Muitas tinham filhos destes amores. Ela, por exemplo, sabia que corriam rumores
sobre a paternidade do seu filho.
Subsistia, também, o hábito de os maridos ferrolharem suas mulheres nos conventos, quando não confiavam mais na
sua fidelidade, como observou uma viajante francesa de passagem pela corte,
na época. A ideia era que elas trocassem os amores terrenos pela devoção a
Deus! Já a infidelidade masculina era vista como um mal inevitável que as
mulheres eram obrigadas a suportar. Fazia parte da natureza dos homens. Ele,
contudo, por ser quem era, tinha que ter comportamento exemplar. Se tivesse que
enfrentar um duelo de pistolas, acabaria morto. Se seus adversários políticos
descobrissem, estava acabado. Se as filhas desconfiassem, também. Sua imagem
pública era a de um homem devoto à família. Em casa, porém, ele tratava a
esposa como um mero alguém.
Era assim que ele dava à amada satisfações sobre a outra: alguém esteve enferma, alguém
saiu comigo ou alguém não pode andar
muito». In Mary del Priore, Condessa
de Barral, A Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN
978-857-302-923-9.
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