«Um não sei quê
que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê». In Luís
de Camões
«Estou deitado
sobre o lado esquerdo, de olhos fechados, imóvel, mas não estou adormecido nem
sequer sonolento. É a minha posição de invocar-te, de poder esvaziar o espírito
para receber a tua presença imaginária. Nesta imobilidade tomo muita
consciência do meu corpo. O joelho direito pesa-me sobre o esquerdo. Osso com
osso faz doer. Questão de dois centímetros, procuro uma almofadinha de músculo
e fico bem. As mãos estão unidas, dedos juntos, palma contra palma, como um
suplicante do século catorze. Unidas e entaladas entre a face esquerda e o
colchão. Mas os dedos mindinho e anelar da mão direita começam a ficar
ligeiramente dormentes. Não quero mexer-me mas tem de ser. Levanto a mão no ar,
abro e fecho abro e fecho abro e fecho, pensar-se-ia que te digo adeus. Mas
não. Nunca te direi adeus meu amor, e a mão volta para o seu lugar. Agora podes
vir. Quero que desmanches a tua trança, que espalhes os cabelos louros,
frisados, imensos, sobre o meu rosto, que roces os teus seios nas minhas
costas, que deslizes por cima de mim, que me inundes do teu singularíssimo
perfume. Ele está a espreitar-me. Sei que está. Não preciso de abrir os olhos
para sentir uma alteração na luz. Isto acontece quando ele cola a testa ao
postigo de vidro fingido da minha cela para saber o que se passa aqui. Sei que
ele está lá porque intercepta a luminosidade da manhã tentando certificar-se de
que estou a dormir. Ele gosta que eu esteja a dormir para ter o prazer de me
acordar com dois berros. Hesita. Tão quieto assim só bem desperto ou morto. Os
adormecidos movem-se no sono, mastigam o cuspo, murmuram. Enquanto o meu
guarda-enfermeiro-carrasco espera que eu adormeça para me chamar em seguida, tu
desvaneces-te, não queres testemunhas do nosso sagrado momento de amor.
Voltarás mais tarde, talvez na primeira alvorada, para me embalares na tua
nudez, na tua paixão, na tua piedade. Agora finjo que durmo. Volto-me com um
resmungo, deixo cair um fio de baba pelo canto da boca. Ele entra. O
doutorzinho está à tua espera, lazarento. Já ouvi falar deste novo médico que
pergunta o mesmo a todos, foste violado pelo pai, abandonado pela mãe, sentes
culpa na morte de um amigo. Não, não, não, respondem todos e ele fica num beco
sem saída, não pode consubstanciar as suas teorias, não pode provar nada, não
pode curar ninguém. Interroga-me num gabinete demasiado pequeno com o ar
condicionado no máximo e tenho frio, não consigo pensar, dar respostas
coerentes, quero estar nos teus braços, beijar a tua boca de ameixa doce e
sumarenta como no tempo em que, e o doutorzinho, que idade tinha quando
morreram os seus pais, como é que reagiu, sente-se culpado, e eu, ninguém
morreu, nunca ninguém morre, só quem nós matamos na memória, no pensamento e no
coração claro, mas não é isso, o que perguntamos é se, tenho frio, viu o seu
pai morto, a sua mãe, algum irmão, diga-nos o que sentiu senhor Pedro Santa
Clara. Não senti nada, fui eu que os matei no coração no pensamento e na memória,
porque tenho a memória o pensamento e o coração ocupados com outras coisas tente
lembrar-se, não me lixem os cor…, queríamos perceber a sua infância, estou
cansado, alguém abusou, vá para o car…, doutor, com o seu Freud desenterrado, o
seu plural majestático e a sua psiquiatria de compêndio, tenho a certeza de que
você é que levou no … aos seis anos, pra cima de mim não o senhor Santa Clara
não precisa de me ofender, acalme-o, senhor enfermeiro, eu cala-te, cab…, se
não queres ir para a cela à prova de som metido numa camisa-de-forças, o senhor
doutor só te quer ajudar minha besta tenho frio, quero o colete-de-forças, este
doutorzinho saído dos cueiros não percebe nada, não sabe quem eu sou pois, já
sabemos que és o D. Pedro, maluco de mer…, responde ao senhor doutor, responde,
responde, responde, responde. Mas eu não quero responder, não me quero tratar,
só quero os teus olhos atlânticos, verdes, transparentes, senhores de todos os
segredos, de todos os feitiços, de todas as paixões, tira-me daqui, leva-me,
embala-me, adormece-me, deixa-me pousar a cabeça no teu colo de garça, nas tuas
coxas perfumadas, começo a gritar Inês, Inês, Inês, Inês, Inês, espetam-me uma
injecção ao acaso no corpo que se debate e suavemente surges do nevoeiro com a
tua trança luminosa, os teus seios de nácar, as tuas ancas de deusa e ao som de
cantos gregorianos que enfeitam a penumbra, deixas que me apoie na seda dos
teus ombros para atravessar, mísero, estropiado e chorando, as ogivas da minha
solidão». In Rosa Lobato Faria, A Trança de Inês, Círculo de Leitores, cortesia
de ASA Editores, 2005, ISBN 978-989-660-034-1.
Cortesia
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