quarta-feira, 18 de março de 2015

As Mulheres do Rei. Dinah Lampitt. «Nenhuma outra mulher do reino se teria arriscado a falar de maneira tão directa, nenhuma outra mulher que se aproximasse da rainha se teria atrevido a mostrar uns dentes tão sujos e cariados e um rosto tão feio e severo, sem o menor vestígio de artifício cosmético»

jdact e wikipedia

«Foi um estranho capricho do destino. No mesmo momento em que a rainha fazia um lance triunfante começaram as dores de parto. Diante dela, sobre a superfície de mármore da mesa, estavam dois dados, ambos mostrando um seis, enquanto no mais fundo do seu corpo inchado sentia aquela pontada aguda e ao mesmo tempo leve que Isabel tão bem conhecia. Com um suspiro quase imperceptível, a rainha de França indiciou a sua vitória, exclamou voilá!, e optou por não prestar atenção ao facto de que o seu décimo primeiro filho acabava de iniciar a viagem para a vida. Os restantes jogadores não deram conta de nada, só o anão ergueu os olhos, com dissimulação, quando um músculo se moveu involuntariamente na face de Isabel. Bravo, ma reine, disse o anão, com a sua voz aguda e estranha. Haveis vencido todos mais uma vez. A rainha olhou-o com uma expressão de desagrado. Vai-te, pequeno monstro, aborreces-me. Depois, com voz mais suave, acrescentou: Philippe, Jean, podeis ficar para me entreter. Moveu a cabeça, fazendo sinal aos dois jovens aperaltados que constituíam o resto da parceria de jogo, sorrindo alegremente e mostrando os dentes brancos e pequenos, antes de, por fim, se levantar. O vestido de veludo, adornado com mil pérolas, cobria-lhe folgadamente o corpo distendido, de forma que era quase impossível notar que Isabel estava grávida e, muito menos, que o parto estava iminente. Isabel era meio italiana, meio bávara, mas no tocante à sua aparência, o sangue germânico da rainha fora sublimado pelas cores vivas do Sul. Os seus cabelos eram longos e tão negros, que de vez em quando pareciam ter reflexos quase violeta, enquanto os olhos eram vivos e luminosos, flamejantes sempre que falava, da pura cor castanha do topázio. Mas a beleza radiante que tinha quando aos catorze anos desposara Carlos VI de França, que na época contava quinze anos, sofria o desgaste constante provocado pelos seus apetites. Já em pé, de pequena estatura, apesar dos socos de tacões altos, a rainha decidiu fazer mais uma travessura antes de dar à luz. Rapazinhos, disse, olhando para os irmãos Jean e Philippe Vallier, meus rapazinhos bonitos e elegantes, servi-me um pouco de vinho e beijai-me com as vossas doces boquinhas rosadas. Sem demora, ouvis-me? Era um jogo a que todos já haviam jogado outras vezes e as regras eram sempre as mesmas. Primeiro, tinham de ir ao Salão da Água de Rosas, onde havia braseiros dos quais saíam aromas penetrantes de perfumes orientais de Damasco, aromas que turvavam os sentidos de todos os que os inalavam; e ali instalavam a deusa do prazer sobre almofadões e davam-lhe massagens, abraçavam-na, faziam tudo o que ela desejasse. Mas, nesse dia, Isabel só pediu que lhe desapertassem a roupa e lhe esfregassem as costas, e quando Jean meteu a mão por baixo da roupa para acariciar os seus peitos enormes, mas maravilhosos, ela deu-lhe uma palmada com firmeza, obrigando-o a retirá-la. Não quereis amor, ma reine?, sussurrou-lhe Jean ao ouvido, de cujo lóbulo pendia uma esmeralda grande como um olho. Não, uma mãe não deve ser lasciva. Os gémeos entreolharam-se, compreendendo a que se referia Isabel e perguntando-se se deviam chamar as damas da rainha. Isabel leu os seus pensamentos. Ainda não é o momento. Podeis levar-me para a minha câmara dentro de meia hora. Agora comprazei-me, minhas doces criaturinhas. E assim foi que a encontraram, finalmente, as parteiras reais, avisadas por Jean, que, ansioso, se escapulira sem ser visto, enquanto o seu irmão satisfazia habilmente os caprichos de Isabel. Madame, deveis vir comigo, disse Mère Jacques, aproximando-se do lugar onde a rainha jazia, extasiada. Era a mais velha de todas, a mulher que assistira Isabel no parto dos seus últimos quatro filhos: Maria, Luís, o delfim, João e Catarina. Acabaram-se os jogos. Deveis dar à luz o vosso filho. Nenhuma outra mulher do reino se teria arriscado a falar de maneira tão directa, nenhuma outra mulher que se aproximasse da rainha se teria atrevido a mostrar uns dentes tão sujos e cariados e um rosto tão feio e severo, sem o menor vestígio de artifício cosmético.
Isabel, deitada nos almofadões, ergueu os olhos preguiçosamente. És tu, bruxa velha? Devia calcular que virias estragar tudo. Quanto mais depressa vos desembaraçardes dele, mais depressa podereis voltar aos vossos jogos, ripostou Mère Jacques, num tom severo. Maldita sejas, disse Isabel, mas permitiu que os gémeos a levantassem e a deixassem nas mãos das parteiras, antes de ir para os seus aposentos privados, caminhando com passos vacilantes sobre os altos tacões. Enquanto observava a corpulenta figura e as mulheres que a acompanhavam, desaparecendo nas profundezas do palácio, Philippe sorriu dissimuladamente para o irmão. Quem o teria gerado?, perguntou num sussurro. Eu não fui, respondeu Jean. Foste tu? É muito improvável. Philippe baixou ainda mais a voz. Até menos provável do que se tivesse sido gerado pelo rei. Os gémeos deram cotoveladas um ao outro, riram em silêncio e depois foram à procura de outras diversões. Três horas mais tarde, às duas da madrugada, Isabel deu um grito e trouxe ao mundo um rapaz enfermiço. Mère Jacques, que acreditava no que diziam as comadres, na história de que, nos primeiros momentos, um recém-nascido parece-se sempre com o pai, examinou as suas feições com olhar penetrante. Mas, à parte o facto de que nunca na vida tinha visto um rapaz tão horrendo, nada havia nele que revelasse quem engendrara a pobre criatura. Não se parecia com Carlos VI de França, que noutros tempos tinha sido muito belo, mas depois degenerara até se tornar um louco sem esperança, nem com o seu delicado irmão, o duque de Orleães, amante favorito da rainha. De facto, com a cabeça calva, um narigão e o olhar fixo, parecia um duende. De que sexo é?, perguntou Isabel, com voz cansada, da sua grande cama. É um rapaz, madame, respondeu Mère Jacques, e apressou-se a limpar os olhos e o nariz do recém-nascido com um pano húmido, tentando dar-lhe um aspecto mais apresentável. Passa-mo, disse a rainha, não com um evidente sentimento maternal, mas sim com o interesse que sempre demonstrava por qualquer animalzito novo que ingressasse na casa real. Mon Dieu, não será famoso pela beleza!, exclamou. Que criatura! Onde está madame Jeanne du Mesnil? Aqui, majestade, respondeu a dama de companhia, que já tinham escolhido para aia do recém-nascido. Põe-te onde te possa ver. Bem, encarrega-te de que o menino tenha suficientes colchas de prata, roupa branca e peles para ficar bem agasalhado. Isabel ergueu-se um pouco na cama e bebeu um grande trago de vinho. E diz ao meu astrólogo que faça o horóscopo da criança. Parece-me que, com essa cara, necessitará que os astros lhe sejam propícios». In Dinah Lampitt, As Mulheres do Rei, 1992/1993, Editora Planeta, tradução de Luís Serrão, Lisboa, 1994, ISBN 972-748-010-1.

Cortesia de Planeta/JDACT