«Foi
um estranho capricho do destino. No mesmo momento em que a rainha fazia um
lance triunfante começaram as dores de parto. Diante dela, sobre a superfície
de mármore da mesa, estavam dois dados, ambos mostrando um seis, enquanto no mais
fundo do seu corpo inchado sentia aquela pontada aguda e ao mesmo tempo leve
que Isabel tão bem conhecia. Com um suspiro quase imperceptível, a rainha de
França indiciou a sua vitória, exclamou voilá!,
e optou por não prestar atenção ao facto de que o seu décimo primeiro filho
acabava de iniciar a viagem para a vida. Os restantes jogadores não deram conta
de nada, só o anão ergueu os olhos, com dissimulação, quando um músculo se
moveu involuntariamente na face de Isabel. Bravo, ma reine, disse o anão, com a sua voz aguda e estranha. Haveis
vencido todos mais uma vez. A rainha olhou-o com uma expressão de desagrado. Vai-te,
pequeno monstro, aborreces-me. Depois, com voz mais suave, acrescentou: Philippe,
Jean, podeis ficar para me entreter. Moveu a cabeça, fazendo sinal aos dois
jovens aperaltados que constituíam o resto da parceria de jogo, sorrindo
alegremente e mostrando os dentes brancos e pequenos, antes de, por fim, se
levantar. O vestido de veludo, adornado com mil pérolas, cobria-lhe folgadamente
o corpo distendido, de forma que era quase impossível notar que Isabel estava
grávida e, muito menos, que o parto estava iminente. Isabel era meio italiana,
meio bávara, mas no tocante à sua aparência, o sangue germânico da rainha fora
sublimado pelas cores vivas do Sul. Os seus cabelos eram longos e tão negros,
que de vez em quando pareciam ter reflexos quase violeta, enquanto os olhos
eram vivos e luminosos, flamejantes sempre que falava, da pura cor castanha do
topázio. Mas a beleza radiante que tinha quando aos catorze anos desposara
Carlos VI de França, que na época contava quinze anos, sofria o desgaste
constante provocado pelos seus apetites. Já em pé, de pequena estatura, apesar
dos socos de tacões altos, a rainha decidiu fazer mais uma travessura antes de
dar à luz. Rapazinhos, disse, olhando para os irmãos Jean e Philippe Vallier,
meus rapazinhos bonitos e elegantes, servi-me um pouco de vinho e beijai-me com
as vossas doces boquinhas rosadas. Sem
demora, ouvis-me? Era um jogo a que todos já haviam jogado outras vezes
e as regras eram sempre as mesmas. Primeiro, tinham de ir ao Salão da Água de
Rosas, onde havia braseiros dos quais saíam aromas penetrantes de perfumes
orientais de Damasco, aromas que turvavam os sentidos de todos os que os
inalavam; e ali instalavam a deusa do prazer sobre almofadões e davam-lhe
massagens, abraçavam-na, faziam tudo o que ela desejasse. Mas, nesse dia,
Isabel só pediu que lhe desapertassem a roupa e lhe esfregassem as costas, e
quando Jean meteu a mão por baixo da roupa para acariciar os seus peitos
enormes, mas maravilhosos, ela deu-lhe uma palmada com firmeza, obrigando-o a
retirá-la. Não quereis amor, ma reine?,
sussurrou-lhe Jean ao ouvido, de cujo lóbulo pendia uma esmeralda grande como
um olho. Não, uma mãe não deve ser lasciva. Os gémeos entreolharam-se,
compreendendo a que se referia Isabel e perguntando-se se deviam chamar as
damas da rainha. Isabel leu os seus pensamentos. Ainda não é o momento. Podeis
levar-me para a minha câmara dentro de meia hora. Agora comprazei-me, minhas
doces criaturinhas. E assim foi que a encontraram, finalmente, as parteiras
reais, avisadas por Jean, que, ansioso, se escapulira sem ser visto, enquanto o
seu irmão satisfazia habilmente os caprichos de Isabel. Madame, deveis vir
comigo, disse Mère Jacques, aproximando-se do lugar onde a rainha jazia,
extasiada. Era a mais velha de todas, a mulher que assistira Isabel no parto
dos seus últimos quatro filhos: Maria, Luís, o delfim, João e Catarina.
Acabaram-se os jogos. Deveis dar à luz o vosso filho. Nenhuma outra mulher do
reino se teria arriscado a falar de maneira tão directa, nenhuma outra mulher
que se aproximasse da rainha se teria atrevido a mostrar uns dentes tão sujos e
cariados e um rosto tão feio e severo, sem o menor vestígio de artifício
cosmético.
Isabel, deitada
nos almofadões, ergueu os olhos preguiçosamente. És tu, bruxa velha? Devia calcular que virias estragar tudo.
Quanto mais depressa vos desembaraçardes dele, mais depressa podereis voltar
aos vossos jogos, ripostou Mère Jacques, num tom severo. Maldita sejas, disse
Isabel, mas permitiu que os gémeos a levantassem e a deixassem nas mãos das
parteiras, antes de ir para os seus aposentos privados, caminhando com passos
vacilantes sobre os altos tacões. Enquanto observava a corpulenta figura e as
mulheres que a acompanhavam, desaparecendo nas profundezas do palácio, Philippe
sorriu dissimuladamente para o irmão. Quem
o teria gerado?, perguntou num sussurro. Eu não fui, respondeu Jean. Foste tu? É muito improvável. Philippe
baixou ainda mais a voz. Até menos provável do que se tivesse sido gerado pelo
rei. Os gémeos deram cotoveladas um ao outro, riram em silêncio e depois foram
à procura de outras diversões. Três horas mais tarde, às duas da madrugada,
Isabel deu um grito e trouxe ao mundo um rapaz enfermiço. Mère Jacques, que
acreditava no que diziam as comadres, na história de que, nos primeiros
momentos, um recém-nascido parece-se sempre com o pai, examinou as suas feições
com olhar penetrante. Mas, à parte o facto de que nunca na vida tinha visto um
rapaz tão horrendo, nada havia nele que revelasse quem engendrara a pobre
criatura. Não se parecia com Carlos VI de França, que noutros tempos tinha sido
muito belo, mas depois degenerara até se tornar um louco sem esperança, nem com
o seu delicado irmão, o duque de Orleães, amante favorito da rainha. De facto,
com a cabeça calva, um narigão e o olhar fixo, parecia um duende. De que sexo é?, perguntou Isabel,
com voz cansada, da sua grande cama. É um rapaz, madame, respondeu Mère
Jacques, e apressou-se a limpar os olhos e o nariz do recém-nascido com um pano
húmido, tentando dar-lhe um aspecto mais apresentável. Passa-mo, disse a
rainha, não com um evidente sentimento maternal, mas sim com o interesse que
sempre demonstrava por qualquer animalzito novo que ingressasse na casa real. Mon
Dieu, não será famoso pela beleza!, exclamou. Que criatura! Onde está madame Jeanne du Mesnil? Aqui,
majestade, respondeu a dama de companhia, que já tinham escolhido para aia do
recém-nascido. Põe-te onde te possa ver. Bem, encarrega-te de que o menino
tenha suficientes colchas de prata, roupa branca e peles para ficar bem
agasalhado. Isabel ergueu-se um pouco na cama e bebeu um grande trago de vinho.
E diz ao meu astrólogo que faça o horóscopo da criança. Parece-me que, com essa
cara, necessitará que os astros lhe sejam propícios». In Dinah Lampitt, As Mulheres do
Rei, 1992/1993, Editora Planeta, tradução de Luís Serrão, Lisboa, 1994, ISBN
972-748-010-1.
Cortesia de
Planeta/JDACT