«Instruam
todos os confidentes para que vo-lo apresentem na primeira noite de cada
eleição. Que a sua leitura seja o primeiro acto oficial de todos os herdeiros
de Pedro. É de importância vital que tomem agnição deste segredo. Guardem-no em
local esconso e não permitam que seja lido por mais alguém. Qualquer quebra
neste ritual, nos próximos séculos, poderá significar o fim da nossa tão bem
amada e estimada Igreja». In Clemente VII, 17 de Junho de 1530
Vaticano. 19 de Abril de 2005
«Foi por deliberação do Altíssimo,
e não haja hesitações sobre isso, que o filho de Maria mudou o nome de
baptismo. Ela havia de gostar de o ver coroado Imperador da Igreja Católica
Apostólica Romana em que tanto acreditava, descendente directo, num sentido
simbólico, da linhagem de Cristo, ou talvez os defuntos saibam mais que os
humanos vivos, lá no Além para onde o pó vai. O certo é que ficará gravada para
todo o sempre, ou enquanto existam memórias, a canónica nomeação do cardeal
Joseph Alois Ratzinger, neste dia de Abril, terminando com a Sede Vacante que
vigorava desde o dia 5 do mesmo mês. Assim que Sodano, o vice-decano do Colégio
Cardinalício, perguntou da sua aceitação para o lugar que Deus seleccionara, ao
final da quarta votação, não levou um segundo a pronunciar Aceito. E os cinco segundos
que levou a responder papa Bento à pergunta por que nome deseja ser tratado?
Também evidenciaram preparação preambular. Não olvidemos que Ratzinger era o
decano do Colégio, ou seja, aquele que teria de fazer estas mesmas perguntas ao
eleito, não tivesse sido ele o escolhido. Não deixava de ser curioso, num
aparte tão-somente elucidativo, que noventa por cento dos memoráveis
antecessores deste Bento, que tenham preferido um nome divergente daquele que a
mãe lhes deu. Os fiéis conglomeravam-se na Praça de São Pedro na esperança que
fumo fosse branco, enfuscado pela pobre subsistência, ao invés do
cinzento-escuro que era de facto. Poucos dos presentes lembravam o primeiro e
segundo conclaves de 1978 em que
também aconteceu idêntico problema. Nove milhões de euros para organizar um
conclave e, esqueciam-se sempre de limpar a maldita chaminé da Capela Sistina.
Porém, após dez minutos de expectação e algumas desistências, os sinos da Basílica
troaram com frenesim como num rebate louco por socorro, alastrando sorrisos, em
vez de pavor, por toda a praça e arredores. Tínhamos papa.
Dentro da benta capela, os irmãos
Gamarelli ajeitavam as vestes papais ao corpo do novo pontífice. Não houvera
qualquer surpresa desta vez. Venceu o candidato provável. Era sempre mais fácil
quando o Papa anterior deixava expressa a sua vontade. Já João XXIII o
fizera quando nomeou, no seu leito de morte, o cardeal Giovanni Montini, para
seu sucessor. No caso do polaco Wojtyla a decisão havia sido tomada com maior
antecedência, alguns meses, ainda que este já o viesse anunciando, particularmente,
há cerca de dois anos. Jamais se deixe de fazer a última vontade de um
moribundo, ainda para mais tratando-se de alguém com uma relação tão próxima
com o Criador. Quem deixava a decisão nas mãos do Espírito Santo sujeitava a
Igreja a surpresas como as do Papa Luciani e do próprio Wojtyla, ainda que,
muito provavelmente, o patriarca de Veneza tivesse grandes hipóteses de ser
nomeado por Paulo VI se ele o tivesse feito. Sodano não podia estar mais feliz.
A sua amada Igreja permaneceria em segurança. Ratzinger, pois aos amigos
dispensa-se o protocolo canónico, era o homem certo no lugar certo. Ninguém
faria melhor trabalho.
O chileno Jorge Medina Estévez
foi o primeiro a assomar à varanda perante o júbilo da multidão. O novo
salvador estava prestes a ser anunciado à urbe e ao orbe extasiados, suspenso
numa informação, num nome, num homem. O décimo sexto Papa com o nome Bento foi
apresentado à História. Ninguém jamais o poderia apagar, nem que reinasse um
dia só. Ratzinger rendeu-se totalmente a esta nova personalidade por si criada
e cumpriu o papel com distinção. Já não era o prefeito da congregação para a doutrina
da fé, já não era cardeal, era uma instituição com brasão próprio e segurança
pessoal. Proferiu o curto discurso, elaborado de véspera, onde relembrou,
inteligentemente, o papa polaco, tão benquisto. Abençoou a cidade e o mundo,
católico, bem entendido, dos outros que rezassem os homólogos, e retirou-se a
fim de tomar posse de todas as propriedades. A partir desta hora, respondia por
um império valioso, incomensurável. Levaria meses a inteirar-se de todos os
haveres, pelo menos daqueles dos quais lhe dariam conhecimento. Dos outros...
nem mesmo o Sumo Pontífice poderia saber tudo aquilo de que era dono, nem
convinha.
Enquanto o mundo rejubilava e retransmitia,
vezes sem conta, a imagem deste Bento a surgir na varanda de Mademo da Basílica de São Pedro a saudar a multidão, em
todos os televisores, carimbando, de vez, para a posteridade o histórico
acontecimento, uma extensa comitiva, já noite cerrada, encabeçada pelo próprio
Pastor dos Pastores, iniciara outro ritual mais privado. O camarlengo Somalo
quebrou os selos que lacravam os apartamentos papais, no palácio apostólico, e
abriu as duas imponentes portas, antes de recuar, reverentemente, para deixar
passar o escolhido de Deus. Tinha de ser o elegido a entrar nos seus futuros
aposentos antes de qualquer outro, numa afirmação de tomada de posse do que era
seu. Assim que Bento deu o primeiro passo para o interior daquela que seria a
sua última residência, foi seguido por um séquito de assistentes, religiosos e leigos,
que teriam o privilégio de servir todos os pedidos do novo dono. Depois de um
dia tão cansativo era a hora do jantar tardio. Atendeu alguns telefonemas de
felicitações dos chefes de Estado mais importantes que, mandava a diplomacia,
mereciam um agradecimento pessoal. Aos outros bastava uma mensagem por escrito
enviada aos dignitários das embaixadas. Ninguém queria deixar de felicitar o
novo papa, mas, se por algum acaso alguém o olvidasse, seria tratado
reciprocamente, porque isso da humildade e do dar a outra face deixava-se para
as ordens religiosas que, de facto, entendiam praticar tais benevolências, ou para
Cristo. Em política não há lugar à piedade». In Luís Miguel Rocha, A Mentira
Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
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