A Queda
«(…) Pois
bem, é esta a organização deles. Quer ter uma
vida limpa? Como todas as pessoas?
É claro que a resposta é sim. Como
dizer não? Está bem. Pois vamos
limpá-lo. Pegue aí um emprego, uma família, férias organizadas. E os pequenos
dentes cravam-se na carne até aos ossos. Mas estou sendo injusto. Não se deve
dizer que a organização é deles. Ela é nossa. Afinal de contas, é o caso de
saber quem vai limpar o outro. Finalmente, trazem nossa genebra. À sua
prosperidade. Sim, o gorila abriu a boca para me chamar de doutor. Nesta
terra, tudo é doutor ou professor. Gostam de mostrar-se respeitosos, por
bondade e por modéstia. Entre eles, pelo menos, a maldade não é uma instituição
nacional. Além disso, não sou médico, embora licenciado. Se quer mesmo saber, eu
era advogado antes de vir para cá. Agora, sou juiz-penitente. Mas permita
que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, seu criado. É um prazer conhecê-lo.
Sem dúvida, deve ser um homem de negócios, não
é? Mais ou menos?
Excelente resposta! E também judiciosa: estamos apenas mais ou menos em todas
as coisas. Vejamos, deixe-me fazer de detective. Tem mais ou menos a minha idade,
o olhar esclarecido dos quarentões que já fizeram de tudo um pouco. Está mais
ou menos bem vestido, quer dizer, como as pessoas se trajam no nosso país, e
tem as mãos finas. Portanto, mais ou menos um burguês! Mas um burguês
requintado! Implicar com os imperfeitos do subjuntivo, na realidade, demonstra
duplamente a sua cultura: em primeiro lugar, porque os reconhece, e porque, a
seguir, eles o irritam. Enfim, eu o divirto, o que, sem vaidade de minha parte,
pressupõe no senhor uma certa abertura de espírito. O senhor é, portanto, mais
ou menos ... Mas que importa?
As profissões me interessam menos do que as seitas. Permita-me que lhe faça
duas perguntas, e só me responda se não as julgar indiscretas. O senhor possui bens? Alguns? Bom. Repartiu-os com os pobres? Não.
É, portanto, o que chamo um saduceu. Se não tem familiaridade com as
Escrituras, reconheço que não lhe adiantará muito. Adianta? Então
conhece as Escrituras? Decididamente, o senhor me interessa. Quanto a mim ... Bem, julgue por si mesmo.
Pela estatura, pelos ombros e por este rosto que tantas vezes me disseram ser
feroz, eu teria mais o aspecto de um jogador de desporto radical que outra
coisa, não é? Mas, a julgar
pela conversa, é preciso conceder-me um pouco de refinamento. O camelo que
forneceu a pele do meu sobretudo sofria, sem dúvida, de sarna; em compensação,
tenho as unhas tratadas. Eu também sou esclarecido e, no entanto, estou-me
abrindo com o senhor sem precauções, baseado unicamente na sua aparência.
Enfim, apesar de minhas boas maneiras e de meu belo linguajar, sou um frequentador
assíduo dos bares de marinheiros do Zeedijk. Mas chega, não procure mais. Meu
trabalho é duplo, eis tudo, como a criatura. Já lhe disse, sou juiz-penitente.
A única coisa simples no meu caso é que nada tenho. Sim, fui rico; não, nada
reparti com os outros. O que prova
isso? Que eu também era um saduceu ... Oh! Está ouvindo as sereias do porto? Esta noite vai haver
neblina sobre o Zuyderzee. Já vai
embora? Desculpe-me se o atrasei. Se me permite, não pagará nada. Está
em minha casa no Mexico-City e tive imenso prazer em recebê-lo. Amanhã,
certamente estarei aqui, como nas outras noites, e aceitarei, de bom grado, seu
convite. Seu caminho ... Bem ... Mas, se não vê nenhum inconveniente, seria
mais simples acompanhá-lo até ao porto. De lá, contornando o bairro judeu,
encontrará as belas avenidas, onde desfilam os bondes carregados de flores e de
números tonitruantes. Seu hotel certamente fica numa dessas avenidas, no
Damrak. Tenha a bondade, primeiro o senhor. Quando a mim, moro no bairro judeu,
ou no que era assim chamado até ao momento em que os hitlerianos abriram
espaço. Que limpeza! Setenta e cinco mil judeus deportados ou assassinados, é a
limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não
se tem carácter, é preciso mesmo valer-se de um método. Nesse caso, ele fez
milagres (?), sem dúvida alguma, e eu moro no local em que foi cometido um dos
maiores crimes da história. Talvez seja isso que me ajude a compreender o
gorila e a sua desconfiança. Desse modo, posso lutar contra essa tendência de
temperamento que me inclina de modo irresistível à simpatia. Quando vejo uma
cara nova, algo dentro de mim faz soar o alarme. Devagar. Perigo! Mesmo quando a simpatia é intensa, tenho cautela. Sabe
que na minha pequena aldeia, numa acção de represália, um oficial alemão pediu
delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que seria fuzilado? Escolher, já imaginou? Aquele? Não, este aqui. E vê-lo
partir. Não insistamos nisso, mas creia-me, caro senhor, todas as surpresas são
possíveis. Conheci um coração puro que recusava a desconfiança. Era pacifista,
libertário e amava com um único amor abrangente toda a humanidade e os animais.
Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as últimas
guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de
sua casa: De onde quer que venha, entre e
seja bem-vindo. Quem, segundo o senhor, respondeu
a este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse
deles e o estriparam». In AlbertCamus, La Chute, Éditions
Gallimard, 1956, A Queda, Best Seller, Editorial Record, tradução de Valerie
Rumjanek, Best Bolso, 2007, Brasil, ISBN 978-85-7799-008-5.
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