«Graças à qualidade eterna do carácter da
minha mãe e ao consequente travão que ela pôs à entrada do progresso naquela
casa, a Pedra Moura guardou para sempre a sua transcendência de lugar
mágico. O reino dos contos de fadas e dos autos de Natal, o mundo dos antigos
aromas e sabores, o sítio da infância, o refúgio ideal para nascer e para
morrer. Assim terminam as memórias de Mário, um dos protagonistas desta
obra. Um livro sobre a condição humana, que opõe os calores perenes da
infância, do maravilhoso e do amor à precaridade das paixões e dos transes da
fortuna. A morte do Mário deixava-a outra vez naquele vazio, perdida, sem ter
onde se agarrar. Andou a vaguear pela casa, que conservava um alvoroço de
chegada, com embrulhos diferentes, presentes sem destinatário, bagagens por
resolver. Mantinha os olhos secos, passeava por salas e quartos com os
polegares sob o queixo, os indicadores a segurar o nariz. O Mário. Que
injustiça. O Mário não podia morrer.
E
então, para continuá-lo, Diamantina pegou no volume que ele lhe levara dois
meses atrás, quando fora à casa da vila desejar-lhe boas férias no Brasil: duzentas
e quarenta e uma folhas A4, encapadas a verde, resultado de uma brincadeira.
Tu escreves a tua vida e eu a minha. E depois comparamos. Vai ser divertido. Ela
não escrevera quase nada. Tinha apontamentos, uma espécie de diário casual e
estava convencida de que com base nisso encontraria na memória o resto dos
bocados que lhe compunham a biografia. Mas não. De algumas coisas não queria
falar, outras preferia esquecer. Descobriu que é complicado olhar para trás e
já estava arrependida da brincadeira quando o Mário lhe trouxe o volume. Está
aqui. É tudo o que me lembro. Fiz o possível por não inventar nada. Quase
nada.
Tio
Zebra, conte a da carroça que o pintor pintou. Quem falou foi a Diamantina, a
minha prima recém-chegada de cara miudinha, comida pelos olhos pretos e pelo cieiro,
os pés descalços, as mãos entrapadas por causa das frieiras. Os sapatos que te
dei, Tininha? São para a rua,
tia, aqui está quente. Estávamos à lareira, o tio Zebra no cadeirão de verga,
nós sentados no arquibanco a dar-a-dar com os calcanhares, todos metidos dentro
da lareira que lá fora ia um frio de rachar. A minha mãe chegou-se ao fogo,
baixou-se, molhou na língua dois dedos da mão esquerda para tirar de golpe a
tampa à cafeteira que chiava, com a mão direita embrulhada na ponta do xaile
pegou na asa, é para lavar a nódoa de azeite que aqui o menino Mário me
derramou na pedra do poial. Eu lavo, mãe. Lavas nada, a tua idade é de sujar.
Durante
um bom momento, ouviu-se a escova de arame a raspar a pedra, está a sair, ainda
não entranhou e a Diamantina, tio Zebra, a da carroça. Era um pintor que vendia
os quadros à beira da estrada, ali como quem vai para a Amareleja e por lá
passava todos os dias uma carroça com quatro pessoas. Um velho com as rédeas da
mula, ao lado a velha, atrás um casal mais novo. Todos muito risonhos e
cumprimentadores menos a moça que era assim a modos tímida, branca como um
papel. Tanto passaram, sempre de boa catadura, que o pintor, para lhes fazer um
agrado lhes pintou o retrato de cabeça. Era para o oferecer ao velho e até me
disse, vê lá tu ó Zebra, pintei o quadro daquela gente que não sei quem são nem
como se chamam, as caras saíram tal e qual e desde que o acabei nunca mais por
mim passaram. E eu, põe-no ao teu lado na beira da estrada e não o vendas,
qualquer dia há-de tilintar a mula e aí te aparecem. O caso é que não
apareceram e um dia, de automóvel, um senhor bem posto, parou e perguntou ao
Severino, assim se chamava o pintor meu amigo, se lhe vendia o quadro e por
quanto.
Este
não vendo, que o fiz para oferecer ao velhote que aqui pintei, só que ele nunca
mais passou por cá mas um dia há-de vir e lho hei-de ofertar. Não há-de vir que
esse aí é o meu sogro que já morreu há um ror de anos e a velha a minha sogra
mulher dele e a moça minha noiva que morreu tísica e este aqui sou eu, já pouca
parecença tenho do que fui e esta é a mula Mulata que também já lá está, esse
passeio demos nós na véspera da minha noiva falecer, viemos-lhe a dar ar que se
sufocava toda em casa, quando digo sogros é uma forma de falar, não cheguei a
casar, morreu ao outro dia sem dizer água vai. O Severino estava sem pinga de
sangue, a sua história está mal contada, compadre, que ainda não há um mês que
a carroça passava aí todas as tardes nesta estrada e tanto passou que lhes
decorei as caras e de cabeça as pintei. Serão parecidos com a sua família que
não chegou a ser e se finou, mas outros são, que dias a fio pelo S. Miguel com
estes que a terra e o quadro não lho vendo, tem dono e não é vocemecê. Pois tem
aqui o meu cartão, se lhe não aparecer o destinatário procure-me nesta morada
que lhe pago o preço que por bem entender pedir-me. E com esta se foi, era um
Citroen arrastadeira, que isto passou-se nas calendas gregas, tinha eu chegado
de África com o casaco de zebra que me valeu o apelido.
Tio
Zebra, são horas, os gaiatos têm de ir dormir, se não amanhã fazem-se moles e
não me saem debaixo das mantas. Ai, tia Margarida, agora não, o finzinho é o
melhor, se me vou deitar neste sufoco não durmo. O Tio Zebra acaba em menos de
nada. Era a Diamantina, aquilo por histórias era pior que macaco por banana, eu
em antes dela chegar para morar com a gente, deixava-me dormir com as histórias
do tio Zebra, mas agora ali aconchegadinho àquela prima quase da minha idade, a
ver os seus olhos bonitos, as suas mãos entrapadas que faziam pena, a sentir o
calor da sua coxa magrinha, a bater os pés na arca, desencontrados com as
batidas secas dos seus calcanhares descalços, a história entrava por mim
adentro como uma água de medo que é bom beber em golinhos pequenos, que
arrepio, fantasmas à noite, primas bonitas e lareira acesa, não há melhor
quando se tem dez anos. Então um belo dia metemo-nos à estrada na motorizada e
fomos à morada que o senhor bem posto deixara ao Severino, era uma casa de
moradia com jardim, ladraram os cães, veio uma senhora de certa idade, olhou
para o cartão, José Antunes regente agrícola, fez-se branca como a cal, os
senhores vêm enganados, mas saiam debaixo da soalheira, ó Arminda sirva água
fresquinha do pote a estes senhores que hão-de vir com sede. Entrámos.
Era uma casa linda, o Severino com o quadro debaixo do braço pegou-lhe a jeito
para comparar a cara da moça com a fotografia em cima do piano, ao lado duma
jarra cheia de lírios. Trazia aqui este quadro pintado por mim que o senhor
Antunes mostrou empenho, deu-me a morada, faço-lhe um preço de amigo, visto ser
aqui a moça tão parecida com a defunta que ali vejo em retrato de fotógrafo». In Rosa
Lobato de Faria, Os Pássaros de Seda, licença editorial por cortesia de Asa
Editores, Círculo de Leitores, 2002, ISBN 972-422-650-6.
Cortesia
de CLeitores/JDACT