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«(…)
Lembra-se das águias de pedra da entrada do Jardim e das bilheteiras semelhantes
a guaritas de sentinela onde oficiavam empregados bolorentos, a piscarem órbitas
míopes de mocho na penumbra húmida?
Os meus pais moravam não muito longe, perto de uma agência de caixões, mãos de
cera e bustos do padre Cruz, que os uivos nocturnos dos tigres faziam vibrar de
terror artrítico nas prateleiras da montra, inválidos do comércio místicos que
decoravam os topos dos frigoríficos sobre ovais de croché, de tal forma que o
ronronar dos aparelhos se diria nascer dos seus esófagos de barro, afligidos de
indigestões de galhetas. Da janela do quarto dos meus irmãos enxergava-se a
cerca dos camelos, a cujas expressões aborrecidas faltava o complemento de um charuto
de gestor. Sentado na retrete, onde um resto de rio agonizava em gargarejos de intestino,
escutava os lamentos das focas que um diâmetro excessivo impedia de viajarem
pela canalização e de descerem no jacto das torneiras grunhidos impacientes de examinador
de Matemática. A cama da minha mãe gemia em certas madrugadas o lumbago do
elefante desdentado que tocava a sineta contra um molho de couves, num comércio
centenariamente inalterável à inflação, comandada pela asma do meu pai em assopros
ritmados de cornaca. A mulher dos amendoins, a que faltava o cotovelo esquerdo,
montava a sua indústria de alcofas nos baixos da nossa varanda, e narrava à minha
avó em discursos verticais, de baixo para cima, as bebedeiras do marido,
através de cuja violência explodiam capítulos de Máximo Gorki da Editorial Minerva.
As manhãs povoavam-se e tucanos e de hibiscos servidos com as carcaças do
pequeno-almoço que abandonavam nos dedos a farinha ou o pó dos móveis por
limpar. A mancha do sol da tarde trotava no soalho na cadência furtiva das
hienas, revelando e escondendo os desenhos sucessivos do tapete, o relevo
lascado do rodapé, o retrato de um tio bombeiro na parede, iluminado de
bigodes, de que o capacete areado cintilava reflexos domésticos de maçaneta. No
vestíbulo havia um espelho biselado que de noite se capaz de conter em si todas
as árvores do Jardim e os orangotangos dependurados das suas argolas à laia de
enormes aranhas congeladas. Por essa época, eu alimentava a esperança insensata
de rodopiar um dia espirais graciosas em torno das hipérboles majestáticas do
professor preto, vestido de botas brancas e calças cor-de-rosa, deslizando no
ruído de roldanas com que sempre imaginei o voo difícil dos anjos de Giotto, a
espanejarem nos seus céus bíblicos numa inocência de cordéis. As árvores do rinque
fechar-se-iam atrás de mim entrelaçando as suas sombras espessas, e seria essa
a minha forma de partir. Talvez que quando eu for velho, reduzido aos meus
relógios e aos meus gatos num terceiro andar sem elevador, conceba o meu
desaparecimento não como o de um náufrago submerso por embalagens de
comprimidos, cataplasmas, chás medicinais e orações ao Divino Espírito Santos,
mas sob a forma de um menino que se erguerá de mim como a alma do corpo nas
gravuras do catecismo, para se aproximar, em piruetas inseguras, do negro muito
direito, de cabelo esticado a brilhantina, cujos beiços se curvam no sorriso
enigmático e infinitamente indulgente de um buda de patins.
Este anjo da guarda de gravata
desde sempre substituiu dentro de mim a pagela virtuosa da Sãozinha e as suas
bochechas equívocas de Mae West de sacristia, envolvida em amores místicos com
um cristo de bigodinho à Fairbanks no cinema mudo do oratório das tias, que
moravam em grandes casas escuras, com os baixos-relevos dos sofás e dos móveis
adensando a penumbra, onde as teclas dos pianos cobertos por xailes de damasco
cintilavam a sua cárie de bemóis. Em cada edifício da Rua Barata Salgueiro,
triste como a chuva num recreio de colégio, habitava uma parente idosa remando
de bengala na vazante das alcatifas repletas de jarrões chineses e de
contadores de embutidos, que o mar de gerações de comerciantes de pera ali
abandonara como numa praia final. Cheirava a fechado, a gripe e a biscoito, e
só as grandes tinas oxidadas, de pernas em forma de garras de esfinge, com a
linha da água ausente assinalada por uma orla castanha semelhante a um vinco de
boné na testa, se me afiguravam vivas, procurando com as ávidas goelas
desmesuradas as tetas de cobre das torneiras, de que desciam, de quando em
quando, lágrimas raras como gotas de argirol. Nas cozinhas idênticas ao
laboratório de química do liceu, com um calendário das Missões com muitos
pretinhos na parede, criadas sem idade, que se chamavam todas Albertina,
preparavam canjas sem sal resmungando nos tachos pedaços de terço, destinados a
condimentar o arroz branco. Nos esquentadores antiquíssimos, contemporâneos da
marmita de Papin, as chamas do gás adquiriam a forma instável de pétalas
frágeis, oscilando à beira de um estoiro catastrófico que reduziria a cacos irreconhecíveis
a última chávena de Sèvres. As janelas não se distinguiam dos quadros: no vidro
ou na tela, as mesmas árvores de Outubro encolhiam-se como pilas transidas depois
de um banho de piscina, a que se enrolavam as serpentinas desbotadas de um carnaval
defunto. As tias avançavam aos arrancos como dançarinas de caixinha de música
nos derradeiros impulsos da corda, apontavam-me às costelas a ameaça pouco segura
das bengalas, observavam-me com desprezo os enchumaços do casaco e proclamavam
azedamente: Estás magro, como se as minhas clavículas fossem mais
vergonhosas que um rastro de bâton no colarinho». In António Lobo Antunes, Os Cus
de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
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