quarta-feira, 11 de março de 2015

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Nos esquentadores antiquíssimos, contemporâneos da marmita de Papin, as chamas do gás adquiriam a forma instável de pétalas frágeis, oscilando à beira de um estoiro catastrófico que reduziria a cacos…»

jdact e wikipedia

A
«(…) Lembra-se das águias de pedra da entrada do Jardim e das bilheteiras semelhantes a guaritas de sentinela onde oficiavam empregados bolorentos, a piscarem órbitas míopes de mocho na penumbra húmida? Os meus pais moravam não muito longe, perto de uma agência de caixões, mãos de cera e bustos do padre Cruz, que os uivos nocturnos dos tigres faziam vibrar de terror artrítico nas prateleiras da montra, inválidos do comércio místicos que decoravam os topos dos frigoríficos sobre ovais de croché, de tal forma que o ronronar dos aparelhos se diria nascer dos seus esófagos de barro, afligidos de indigestões de galhetas. Da janela do quarto dos meus irmãos enxergava-se a cerca dos camelos, a cujas expressões aborrecidas faltava o complemento de um charuto de gestor. Sentado na retrete, onde um resto de rio agonizava em gargarejos de intestino, escutava os lamentos das focas que um diâmetro excessivo impedia de viajarem pela canalização e de descerem no jacto das torneiras grunhidos impacientes de examinador de Matemática. A cama da minha mãe gemia em certas madrugadas o lumbago do elefante desdentado que tocava a sineta contra um molho de couves, num comércio centenariamente inalterável à inflação, comandada pela asma do meu pai em assopros ritmados de cornaca. A mulher dos amendoins, a que faltava o cotovelo esquerdo, montava a sua indústria de alcofas nos baixos da nossa varanda, e narrava à minha avó em discursos verticais, de baixo para cima, as bebedeiras do marido, através de cuja violência explodiam capítulos de Máximo Gorki da Editorial Minerva. As manhãs povoavam-se e tucanos e de hibiscos servidos com as carcaças do pequeno-almoço que abandonavam nos dedos a farinha ou o pó dos móveis por limpar. A mancha do sol da tarde trotava no soalho na cadência furtiva das hienas, revelando e escondendo os desenhos sucessivos do tapete, o relevo lascado do rodapé, o retrato de um tio bombeiro na parede, iluminado de bigodes, de que o capacete areado cintilava reflexos domésticos de maçaneta. No vestíbulo havia um espelho biselado que de noite se capaz de conter em si todas as árvores do Jardim e os orangotangos dependurados das suas argolas à laia de enormes aranhas congeladas. Por essa época, eu alimentava a esperança insensata de rodopiar um dia espirais graciosas em torno das hipérboles majestáticas do professor preto, vestido de botas brancas e calças cor-de-rosa, deslizando no ruído de roldanas com que sempre imaginei o voo difícil dos anjos de Giotto, a espanejarem nos seus céus bíblicos numa inocência de cordéis. As árvores do rinque fechar-se-iam atrás de mim entrelaçando as suas sombras espessas, e seria essa a minha forma de partir. Talvez que quando eu for velho, reduzido aos meus relógios e aos meus gatos num terceiro andar sem elevador, conceba o meu desaparecimento não como o de um náufrago submerso por embalagens de comprimidos, cataplasmas, chás medicinais e orações ao Divino Espírito Santos, mas sob a forma de um menino que se erguerá de mim como a alma do corpo nas gravuras do catecismo, para se aproximar, em piruetas inseguras, do negro muito direito, de cabelo esticado a brilhantina, cujos beiços se curvam no sorriso enigmático e infinitamente indulgente de um buda de patins.
Este anjo da guarda de gravata desde sempre substituiu dentro de mim a pagela virtuosa da Sãozinha e as suas bochechas equívocas de Mae West de sacristia, envolvida em amores místicos com um cristo de bigodinho à Fairbanks no cinema mudo do oratório das tias, que moravam em grandes casas escuras, com os baixos-relevos dos sofás e dos móveis adensando a penumbra, onde as teclas dos pianos cobertos por xailes de damasco cintilavam a sua cárie de bemóis. Em cada edifício da Rua Barata Salgueiro, triste como a chuva num recreio de colégio, habitava uma parente idosa remando de bengala na vazante das alcatifas repletas de jarrões chineses e de contadores de embutidos, que o mar de gerações de comerciantes de pera ali abandonara como numa praia final. Cheirava a fechado, a gripe e a biscoito, e só as grandes tinas oxidadas, de pernas em forma de garras de esfinge, com a linha da água ausente assinalada por uma orla castanha semelhante a um vinco de boné na testa, se me afiguravam vivas, procurando com as ávidas goelas desmesuradas as tetas de cobre das torneiras, de que desciam, de quando em quando, lágrimas raras como gotas de argirol. Nas cozinhas idênticas ao laboratório de química do liceu, com um calendário das Missões com muitos pretinhos na parede, criadas sem idade, que se chamavam todas Albertina, preparavam canjas sem sal resmungando nos tachos pedaços de terço, destinados a condimentar o arroz branco. Nos esquentadores antiquíssimos, contemporâneos da marmita de Papin, as chamas do gás adquiriam a forma instável de pétalas frágeis, oscilando à beira de um estoiro catastrófico que reduziria a cacos irreconhecíveis a última chávena de Sèvres. As janelas não se distinguiam dos quadros: no vidro ou na tela, as mesmas árvores de Outubro encolhiam-se como pilas transidas depois de um banho de piscina, a que se enrolavam as serpentinas desbotadas de um carnaval defunto. As tias avançavam aos arrancos como dançarinas de caixinha de música nos derradeiros impulsos da corda, apontavam-me às costelas a ameaça pouco segura das bengalas, observavam-me com desprezo os enchumaços do casaco e proclamavam azedamente: Estás magro, como se as minhas clavículas fossem mais vergonhosas que um rastro de bâton no colarinho». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT