sexta-feira, 27 de março de 2015

Bala Santa. Luís Miguel Rocha. «Qualquer comensal que queira usufruir dos valimentos deste estabelecimento terá primeiro de ver aprovada essa ambição. Autorização sem a qual jamais passará pelas portas de vidro fumado…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Anno Domini MMVII
«Tudo tem um início. O princípio, o começo, o arranque, o zero, o domingo, o tiro de partida, o esgravatar da terra em busca de luz, o chapinhar na água, a precoce batida do coração, a primeira palavra, o primeiro choro que aprisiona a alma e agarra a vida até à hora da morte que se espera tardia e coberta de prosperidade e prestígio..., o nada a caminho do tudo, a primeira pedra de uma aldeia, vila, cidade, de um muro, de uma casa, de um palácio, de uma igreja, de um edifício. Deste edifício em cidade incógnita, cujo rés-do-chão e subcave são ocupados por um restaurante de luxo, conforme nos indica a ementa fixada ao lado da porta. Não que anuncie aos quatro pontos cardeais, mais os colaterais, sobre esta sua qualidade, nada disso, percebe-se pelo facto de não se saber o que está por trás das portas de vidro fumado, sempre fechadas, pela pose altiva do empregado, impecavelmente vestido com uma farda da cor do vinho tinto. Em última análise, o leigo aperceber-se-á do luxo que emana deste restaurante pelo facto de não haver qualquer intenção de anunciar o estabelecimento para além de um empregado fardado e da placa que indica uma amostra de pratos executáveis. A falta de preços na ementa, aliada à proliferação de expressões em francês, é também sinal de fausto, mesmo que a cidade incógnita se situe em terras francesas, o que não é confirmado nem tão-pouco desmentido. O que é certo é que o dito restaurante não precisa de qualquer divulgação dos seus serviços, o que, por si só, subentende clientela recorrente. Qualquer comensal que queira usufruir dos valimentos deste estabelecimento terá primeiro de ver aprovada essa ambição. Autorização sem a qual jamais passará pelas portas de vidro fumado. Habitualmente, pode ser conseguida através da sugestão de um cliente frequente, o equivalente a membro, que tem muito peso junto da gerência, ou fazendo um pedido formal que passa por um longo processo de averiguação da vida privada do visado. Uma conta bancária recheada é útil mas não preponderante, pelo que é habitual verem-se declinadas as pretensões de alguns novos-ricos, ainda que também não sejam escassas as de membros consanguíneos de linhagens ancestrais. Tal declinação, e repare-se que as palavras rejeição ou recusa jamais são usadas, é efectivada através de uma missiva em sobrescrito branco, sem referência ao remetente. Uma vez tomada essa decisão, esta nunca mais poderá ser revogada. Em caso de aceitação, haverá um conjunto de regras a serem consideradas. Está, por exemplo, previsto nos estatutos a expulsão de um membro nos casos de ofensas mais graves, se bem que tal nunca tenha acontecido. A aceitação como cliente frequente ou membro do estabelecimento é manifestada de forma diferente da recusa. Um telefonema para a residência a convidar o eleito para um jantar. Aí sim, é cumprimentado pelo empregado fardado que abre as portas de vidro fumado. Uma vez lá dentro, é tratado com toda a deferência, mas sem nunca roçar o excesso. Outro serviçal encarrega-se de o aliviar das vestes mais pesadas. Seguidamente, é encaminhado para a sua mesa que, a partir deste dia, será sempre a mesma, seja qual for a hora, em qualquer dia da semana. Pode trazer sempre os convidados que desejar, conquanto informe a gerência até cinco dias de antecedência e reporte os nomes dos convidados. Neste caso não será aferida a moralidade dos acompanhantes. Privilégio este de clientes seleccionados que podem comprovar o que e com quem quiserem: favores, negócios, intrigas, chantagem, compras, o destino dos outros, os seus destinos, sem que ninguém aponte um dedo recriminatório, tudo acompanhado pelo paladar requintado de um peito de frango recheado com patê de bacon e molho de cogumelos, vinho tinto e brandy. Aqui não existem transacções financeiras, só as mencionadas nos negócios discutidos à mesa e que não são poucas. Os membros pagam uma avença mensal de doze mil e quinhentos euros, por transferência bancária, que cobre todos os privilégios de ter uma cozinha disponível durante as vinte e quatro horas dos sete dias da semana. Assim funciona este restaurante, com filiais espalhadas um pouco por todas as cidades de maior influência político-económica do mundo, como esta.
Hoje, nesta hora de almoço em particular, o restaurante está meio vazio, o que equivale a dizer que os clientes das mesas desocupadas ficaram retidos nas suas vidas pessoais ou profissionais ou outras. A mesa que nos importa é a treze, contudo, os dois homens que nela se sentam não são dados a concepções supersticiosas. Na sua opinião, tão válidas como quaisquer outras, o que importa é o que e o agora. O que está para além disso são teorias inúteis e inválidas, aos milhares, incapazes de serem avalizadas, de momento, por falta de elementos que consigam explicá-las. Contudo, estes homens são moldáveis aos tempos e às circunstâncias. Cada caso é um caso. Num mundo em que o motor é o dinheiro, esta filosofia adaptativa é vantajosa e estes dois sabem aproveitar-se dela. Razões de segurança e privacidade impedem que se divulgue em que cidade se localiza o restaurante a que pertence a mesa número treze em que se sentam, um na frente do outro, os dois homens. O que está de costas para a sala de refeições é o membro e, embora não transpareça, tem idade para ser pai ou até avô do que se lhe senta à sua frente. Não é uma coisa nem outra, nenhum laço de parentesco os une, a não ser o de Adão e Eva que nos liga a todos. Na verdade nem amigos são. O mais novo é colaborador do mais velho, para não dizer servo, um epíteto em desuso nos dias actuais, pelo mesmo motivo talvez não devamos chamar ordens àquilo que está a receber e sim instruções ou indicações. Trajam sobriamente, como qualquer executivo ou homem de negócios sentado nas outras mesas. Comem uns deliciosos bocados de alabote com molho de espinafres e mascarpone e folhados de presunto de Parma, o que deita por terra a teoria de que se come pouco e mal nos restaurantes de luxo. A ser verdade, este deve então figurar nos da categoria de excepção à regra. Bebem um Pinot Noir, Kaim ira, colheita de 1998, escolhido pelo membro sem qualquer consulta, prévia ou posterior, do colaborador. Tudo é comedido, pois não são homens de excessos nem contemplações, nunca o foram, já que a palavra excepção não faz parte dos seus vocabulários. Tudo é o que é, aqui e agora, sempre. Não tive oportunidade de lhe perguntar como está a correr a investigação nos Estados Unidos, pergunta o mais velho. Foi arquivada, obviamente. Causas naturais. Perfeito. Posso portanto depreender que não restou qualquer indício no local?» In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.

Luís Miguel... Que estejas na Paz!

Cortesia de CFerro/JDACT