Anno Domini MMVII
«Tudo tem um início. O princípio, o começo, o arranque, o
zero, o domingo, o tiro de partida, o esgravatar da terra em busca de luz, o
chapinhar na água, a precoce batida do coração, a primeira palavra, o primeiro
choro que aprisiona a alma e agarra a vida até à hora da morte que se espera
tardia e coberta de prosperidade e prestígio..., o nada a caminho do tudo, a
primeira pedra de uma aldeia, vila, cidade, de um muro, de uma casa, de um
palácio, de uma igreja, de um edifício. Deste edifício em cidade incógnita,
cujo rés-do-chão e subcave são ocupados por um restaurante de luxo, conforme
nos indica a ementa fixada ao lado da porta. Não que anuncie aos quatro pontos
cardeais, mais os colaterais, sobre esta sua qualidade, nada disso, percebe-se
pelo facto de não se saber o que está por trás das portas de vidro fumado,
sempre fechadas, pela pose altiva do empregado, impecavelmente vestido com uma
farda da cor do vinho tinto. Em última análise, o leigo aperceber-se-á do luxo
que emana deste restaurante pelo facto de não haver qualquer intenção de
anunciar o estabelecimento para além de um empregado fardado e da placa que
indica uma amostra de pratos executáveis. A falta de preços na ementa, aliada à
proliferação de expressões em francês, é também sinal de fausto, mesmo que a
cidade incógnita se situe em terras francesas, o que não é confirmado nem
tão-pouco desmentido. O que é certo é que o dito restaurante não precisa de
qualquer divulgação dos seus serviços, o que, por si só, subentende clientela
recorrente. Qualquer comensal que queira usufruir dos valimentos deste
estabelecimento terá primeiro de ver aprovada essa ambição. Autorização sem a
qual jamais passará pelas portas de vidro fumado. Habitualmente, pode ser
conseguida através da sugestão de um cliente frequente, o equivalente a membro,
que tem muito peso junto da gerência, ou fazendo um pedido formal que passa por
um longo processo de averiguação da vida privada do visado. Uma conta bancária
recheada é útil mas não preponderante, pelo que é habitual verem-se declinadas
as pretensões de alguns novos-ricos, ainda que também não sejam escassas as de
membros consanguíneos de linhagens ancestrais. Tal declinação, e repare-se que
as palavras rejeição ou recusa jamais são usadas, é efectivada
através de uma missiva em sobrescrito branco, sem referência ao remetente. Uma
vez tomada essa decisão, esta nunca mais poderá ser revogada. Em caso de
aceitação, haverá um conjunto de regras a serem consideradas. Está, por
exemplo, previsto nos estatutos a expulsão de um membro nos casos de ofensas
mais graves, se bem que tal nunca tenha acontecido. A aceitação como cliente
frequente ou membro do estabelecimento é manifestada de forma diferente da
recusa. Um telefonema para a residência a convidar o eleito para um jantar. Aí
sim, é cumprimentado pelo empregado fardado que abre as portas de vidro fumado.
Uma vez lá dentro, é tratado com toda a deferência, mas sem nunca roçar o
excesso. Outro serviçal encarrega-se de o aliviar das vestes mais pesadas.
Seguidamente, é encaminhado para a sua mesa que, a partir deste dia, será
sempre a mesma, seja qual for a hora, em qualquer dia da semana. Pode trazer
sempre os convidados que desejar, conquanto informe a gerência até cinco dias
de antecedência e reporte os nomes dos convidados. Neste caso não será aferida
a moralidade dos acompanhantes. Privilégio este de clientes seleccionados que
podem comprovar o que e com quem quiserem: favores, negócios, intrigas,
chantagem, compras, o destino dos outros, os seus destinos, sem que ninguém
aponte um dedo recriminatório, tudo acompanhado pelo paladar requintado de um
peito de frango recheado com patê de bacon e molho de cogumelos,
vinho tinto e brandy. Aqui não existem transacções financeiras, só as
mencionadas nos negócios discutidos à mesa e que não são poucas. Os membros
pagam uma avença mensal de doze mil e quinhentos euros, por transferência
bancária, que cobre todos os privilégios de ter uma cozinha disponível durante
as vinte e quatro horas dos sete dias da semana. Assim funciona este
restaurante, com filiais espalhadas um pouco por todas as cidades de maior
influência político-económica do mundo, como esta.
Hoje,
nesta hora de almoço em particular, o restaurante está meio vazio, o que
equivale a dizer que os clientes das mesas desocupadas ficaram retidos nas suas
vidas pessoais ou profissionais ou outras. A mesa que nos importa é a treze,
contudo, os dois homens que nela se sentam não são dados a concepções
supersticiosas. Na sua opinião, tão válidas como quaisquer outras, o que
importa é o que e o agora. O que está para além disso são teorias inúteis e
inválidas, aos milhares, incapazes de serem avalizadas, de momento, por falta
de elementos que consigam explicá-las. Contudo, estes homens são moldáveis aos
tempos e às circunstâncias. Cada caso é
um caso. Num mundo em que o motor é
o dinheiro, esta filosofia adaptativa é vantajosa e estes dois sabem
aproveitar-se dela. Razões de segurança e privacidade impedem que se divulgue
em que cidade se localiza o restaurante a que pertence a mesa número treze em
que se sentam, um na frente do outro, os dois homens. O que está de costas para
a sala de refeições é o membro e, embora não transpareça, tem idade para ser
pai ou até avô do que se lhe senta à sua frente. Não é uma coisa nem outra,
nenhum laço de parentesco os une, a não ser o de Adão e Eva que nos liga a
todos. Na verdade nem amigos são. O mais novo é colaborador do mais velho, para
não dizer servo, um epíteto em desuso nos dias actuais, pelo mesmo motivo
talvez não devamos chamar ordens àquilo que está a receber e sim instruções ou
indicações. Trajam sobriamente, como qualquer executivo ou homem de negócios
sentado nas outras mesas. Comem uns deliciosos bocados de alabote com molho de
espinafres e mascarpone e folhados de presunto de Parma, o que deita por
terra a teoria de que se come pouco e mal nos restaurantes de luxo. A ser
verdade, este deve então figurar nos da categoria de excepção à regra. Bebem um
Pinot Noir, Kaim ira, colheita de 1998, escolhido pelo membro sem
qualquer consulta, prévia ou posterior, do colaborador. Tudo é comedido, pois
não são homens de excessos nem contemplações, nunca o foram, já que a palavra excepção não faz parte dos seus
vocabulários. Tudo é o que é, aqui e
agora, sempre. Não tive oportunidade de lhe perguntar como está a
correr a investigação nos Estados Unidos, pergunta o mais velho. Foi arquivada,
obviamente. Causas naturais. Perfeito. Posso portanto depreender que não restou
qualquer indício no local?» In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de
Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.
Luís Miguel... Que estejas na Paz!
Luís Miguel... Que estejas na Paz!
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