O romance histórico no primeiro romantismo português
Herculano
«(…) Quando o carácter
dos indivíduos ou das nações é suficientemente conhecido, quando os monumentos,
as tradições e as crónicas desenharam esse carácter com pincel firme, o
novelista pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais
habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que é vivo, o
génio do povo que passou pelo do povo que passa. Desde o aparecimento de Mestre
Gil, da Abóbada e da Morte do Lidador,
Herculano conquistara um público que lhe ficou fiel e discípulos que o não negaram.
Testemunham-no não só as sucessivas reedições dos seus romances, como também o
seu discípulo Rebelo Silva, que em 1848
escrevia no jornal A Época: … esse
nome escrito no rosto da Harpa do
Crente, da História de Portugal,
do Presbítero, e ultimamente
no Monge de Cister é tão conhecido na casa patriarcal
das províncias como no faustoso aposento da cidade.
Em 1840, Herculano escreveu o seu primeiro romance histórico, o Monge
de Cister, que só veio a ser publicado em volume em 1848, para entretanto dar a primazia de
estampa ao Eurico (1844), elaborado durante o ano de 1843. O Monge de Cister está
composto dentro dos princípios estéticos e dos objectivos que o seu autor adoptara
para o género novelístico cujas primícias lhe ficaram a pertencer na literatura
portuguesa. O Monge faz parte de uma série romanesca intitulada O
Monasticon, concepção complexa,
cujos limites não sei de antemão assinalar, e que o autor, depois de escrito
o Eurico, deixou apenas em díptico. O Eurico, porém, já
não é só uma crónica-romance mas, principalmente, uma crónica-poema,
lenda ou quer que seja dos presbítero
godo. Esse hibridismo elevou, pela poesia do eu romântico, o Eurico à categoria de uma das obras representativas
do Romantismo. A densa atmosfera de fatalidade nos amores de Eurico e
Hermengarda, a solução pela morte de um e loucura da outra estavam na índole da
concepção do amor mais generalizada entre portugueses: amor louco, morte por
amor.
Outra virtude romântica
que explica o lugar que o Eurico veio ocupar na produção literária do romantismo
português, direi até peninsular, foi a época escolhida, que tanto satisfez ao
gosto da época pelo exotismo no tempo, talvez a mais atraente sedução a que o
romântico sucumbia. No Eurico, Herculano foge já ao cânone por ele próprio
estabelecido, dominado pela feição do seu temperamento poético, elegíaco e
soturno. De resto, só os medíocres são ortodoxos na escola literária; os
grandes e os maiores não se sujeitam ao constrangimento da regra. Castilho,
ao apreciar o Eurico na Revista Universal Lisbonense condena-lhe
a originalidade dizendo: … o Eurico, em nossa particular e
respeitosa opinião, é um livro mui notável para ser lido, muito impróprio para
ser inculcado como vade mecum.
Os seus desenhos são severos, grandiosos e todos a negro. Foi uma valente mão a
que os perfez; só outra valente mão os poderia copiar, e faria mal se o fizesse.
São como as poesias de Ossian: maravilham, e largam-se. O que hoje principalmente
carecemos, o que pedimos, e o que esperamos virá aparecendo, são obras correntes, acessíveis a todos os
entendimentos, adaptáveis a todos os gostos, espelhos do mundo, da alma e do coração,
três coisas em que há sempre misturada toda a sorte de cores e de tons.
Assim, Castilho já então
aparecia a propugnar por uma novelística divulgadora de conhecimentos, de moral
acomodada às conveniências, acessível a todos
os entendimentos, aquilo que viria a ser o romance histórico do segundo
romantismo. O Monge de Cister, festejado como a nossa primeira
novela histórica aquando da sua publicação, constitui o segundo quadro de O
Monasticon e conta a luta íntima entre uma violenta paixão de vingança
e o preceito cristianíssimo do perdão. Pretende ressuscitar a época do rei João I
e está recheado de erudição arqueológica suficientemente adequada a um romance.
Neste particular, o poder descritivo do autor é incomparavelmente maior do que
o evocativo. Herculano não possuía em grande medida o poder de criação
novelística e o Monge de Cister, no que respeita a acção e personagens,
foi todo descrito em tons sombrios e, se na parte histórica, em vários lances,
rivaliza com Scott, na elaboração da parte fictiva ficou aquém das obras do romancista
escocês». In Castelo Branco Chaves, O Romance Histórico no Romantismo Português,
Instituto de Cultura Português, Centro Virtual Camões, Instituto Camões,
oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1980.
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