Anno
Domini MMVI
«(…) Antes
de entrar no carro, o homem limpa a superfície onde o religioso se segurara
após ter levado o tiro certeiro no ombro. Monsenhor Firenzi fita-o, a dor a
trespassar-lhe o corpo. É isso que se
sente quando se leva um tiro, pensa. O homem limpando as provas do que
acontecera, segundos antes, a ironia... Depois, ao olhar o objecto onde se
amparara havia poucos segundos, um minuto, se tanto pouco importa, a compunção
acossando-lhe o corpo e o português fluente assomando-lhe à boca. É em casa que
se pensa nessas horas. Que Deus me perdoe.
Tudo pronto, o homem entra na carrinha e avançam, nem muito depressa nem muito
devagar, para não levantarem suspeitas; são profissionais, sabem o que fazem e
como, mas não são infalíveis, porque isso só Deus é, e quando quer. A rua volta
à quietude original. Nada de irregular, a limpeza foi bem-feita, nenhum
vestígio de sangue na caixa do correio onde o monsenhor se agarrou.
Albino. 29 de Setembro de 1978
Se para
uns a rotina é uma roda que mói e mata, destrói e desgraça, toda aquela actuação
sempre igual, segundos, minutos, semanas, dias, e está dado a entender o
cenário repetitivo pelo qual se vai passar novamente como uma roda que mói e
mata, destrói e desgraça, toda aquela actuação sempre igual, segundos, minutos,
semanas, dias, e está dado a entender o cenário... Para outros é uma
necessidade abalada apenas pela diferença, pela mudança súbita ou moderada,
pelo factor não habitual do que possa surgir como algo novo num plano que não deve
ser modificado nunca sob pretexto algum. A vida não deixa de ser mesquinha com
uns e outros, mudando o que agrada a alguns e perseverando o que não compraz a
outros. Mas sobre isso não se queixa a irmã Vincenza, há quase vinte anos ao
serviço do mesmo Albino Luciani, são os desígnios do Senhor, quem somos nós
para questioná-los, e quis que ao fim desses anos todos mudassem de residência.
Seiscentos quilómetros a separar uma da outra, a sua terra desta, mas, ainda
assim não se queixa a anafada irmã Vincenza, pelas razões alegadas, e que já
está de pé a essa hora da madrugada, quatro e vinte e cinco, para sermos
precisos. Faz parte da rotina, da ditosa rotina a que já se habituou neste novo
lar. Na mão uma bandeja de prata, com um bule de café, uma chávena e um pires. Deixá-la-á
à porta dos aposentos de Albino Luciani. Uma operação há garganta há muitos
anos arás deixa-o com um gosto amargo na boca ao despertar, que colmata com o
café que vai dentro deste bule, em cima
da bandeja de prata que Vincenza leva na mão por este corredor que faz, há um
mês, parte da sua rotina. A essas ainda não se afez a irmã Vincenza, aos
corredores, são compridas e largos, fracamente iluminadas durante a noite, há-de
queixar-se disso ao seu senhor Albino. A história dos séculos em cada pedra, em
cada estátua, pintura e tapeçarias ricamente debruadas a penderem das paredes
gigantescas, mas tudo isso assusta irmã Vincenza. Quase deu um grito ao passar
por aquele querubim ali atrás, que lhe parecera mais uma criança agachada a fazer
uma cachopice. Mas que tonta,
pensa a irmã, se crianças são coisas que nunca pisaram estes corredores, pelo
menos que se saiba. Certo é que a estoicidade daquilo não deixa ninguém
apático, nem esta irmã Vincenza que se não fora por Albino Luciani, ão estaria
ali de certeza, àquela hora da matina, num corredor que parecia bem diferente
durante o dia, quando o local ganhava uma vida intensa e inebriante.
Mas à
bonacheirona irmã Vincenza compete tudo o que diz respeito à vida alimentar e médica
de Albino Luciani, significando a parte médica a mera administração de
medicamentos e injecções e não o diagnóstico efectivo de doenças; isso cabe aos
senhores doutores que vêm assiduamente saber da saúde de Albino, que nunca foi
nem é homem para descurar essas coisas do corpo. Neste momento, ainda é o
médico que o assistia na residência anterior quem o faz agora, o doutor
Giusseppe Rós, que de duas em duas semanas faz seiscentos quilómetros para ver
o seu paciente predilecto, que com a idade fica mais rijo. Tudo isto Vincenza realiza
com gosto, como uma esposa dedicada ao marido; mas não é este o caso, apenas um
exemplo da relação entre os dois. Albino Luciani é um homem bom, que sempre a
trata com polidez e benquerença e que a considera mais uma amiga do que uma
serviçal, longe dele ter tal coisa à sua volta, por isso a chamou para junto de
si quando assentou o pé naquela nova residência, bem maior que a anterior, bem
mais faustosa, coisa que a ele o deixa contrafeito, já que não é homem de luxos
terrenos, antes espirituais, mas com tempo tratará de livrar-se dos luxos e
colocar a casa a seu gosto, porque é melhor não a chamar de palácio». In
Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-969-7.
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SEmergência/JDACT