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Diógenes Patrai entrou no castelo da popa onde um pequeno candeeiro de azeite, balançando
como um qualquer insecto tresloucado à volta da luz, iluminava palidamente um
grupo de quatro damas, aninhadas a um canto e agarradas com unhas e dentes à
mesa e às cadeiras pregadas no chão de madeira. Uma delas, parecendo a mais
velha, lívida mas altiva e determinada, paramentada como uma princesa, elevou-se
a custo e perguntou: Qual a nossa
situação, capitão? Estamos perdidos, Senhora, disse o intrépido
comandante. Estamos em pleno mar Atlântico no reino de Portugal algures entre
a ponte das Águas Férreas e o cabo de Sinis. Há fragas adiante e a tempestade
está a arrastar-nos contra elas. Seria melhor que tomásseis um bote com vossas aias
e alguns homens e tentásseis a vossa sorte pois existem também vastos areais
nestas costas. Quanto à nau, receio que esteja perdida mais hora menos hora.
Estamos nas mãos de Deus. Acaso
pensais que vos abandonaria? Respondeu Vataça Lascaris, com firmeza.
Haveis-nos conduzido na derradeira parte desta empresa a este local inóspito,
depois de há vários anos termos navegado por todo o mar Mediterrâneo e se nosso
destino for de morrer nos braços das vagas, então façamo-lo com a dignidade da
nossa estirpe e conforme a vontade de Deus. E Vataça Lascaris
continuou: Capitão Diógenes trazei a Cruz do Santo Lenho e a Cabeça-Relicátio
do papa S. Fabiano e levai-me ao convés ao encontro da fúria dos rudes
elementos da natureza. Agarradas umas às outras, com o comandante à frente, Vataça Lascaris,
com a Cruz do Santo Lenho na mão, e Diógenes Patrai levando a Cabeça-Relicário
do papa S. Fabiano saíram para o tombadilho do castelo da popa e juntamente com
o timoneiro seguraram-se à cana-do-leme da nau. A escuridão, a força dos ventos,
a chuva nas faces era aterradora. Vataça Lascaris levantou a Cruz de
prata ao céu enquanto Diógenes fazia o mesmo gesto com o Relicário do santo papa
e gritou: Senhora minha mãe, mãe de Jesus
Cristo que morreu na cruz para salvar os homens e cujo lenho que trago comigo e
que agora te mostro é pedaço dessa cruz que o crucificou até à morte. Vem em
nosso auxílio. E se existir terra para além destes escolhos negros que eu vejo
e se essa terra for terra de Deus, Senhora minha mãe leva-nos até porto seguro.
Se tal fizerdes prometo-vos que vos honrarei para sempre e outros vos honrarão
até ao fim dos tempos. E nesse templo que erigirei em Vosso louvor serás sempre
recordada como protectora e salvadora de quem estiver em aflição entre as ondas
do imenso mar. E se permitires que sejamos salvas desta horrenda tempestade, a
capela que te erigiremos nestas paragens será para todos os navegantes a capela
das Salvas, de Nossa Senhora das Salvas. Quando Vataça baixou o braço que
segurava o Santo Lenho, o vento serenou e as ondas do mar acalmaram.
Os
primeiros clarões da madrugada já se faziam ver no horizonte. O mar ganhava um
tom mais azul e os escolhos já não eram negros, eram sim as rochas amarelas do
cabo de Sinis. Lá em cima, na falésia que rodeava a baía algumas casas eram avistadas.
Com os mastros partidos e as velas desfeitas, Diógenes mandou que a tripulação agarrasse
os remos e dirigisse a nau para as areias que surgiam a sul. Mas depressa reparou
que antes do areal e depois de um enorme rochedo surgia uma pequena calheta com
várias embarcações amarradas a enormes pedregulhos, em terra firme. Isso
significava a existência de pescadores, de gentes do mar que o ajudariam
certamente a consertar a sua nau. Se gente solidária existe essa é a do mar que
nunca deixa de ajudar aqueles da mesma condição marinheira. Para aí se
dirigiram e entraram na pequena enseada até que a embarcação encontrou o areal
e estacionou o enorme bojo de madeira sobre a areia.
Milagre,
milagre, gritaram todos de contentamento e logo se ajoelharam assim que saltaram
em terra. Corria o ano do Senhor de 1314
e Vataça
Lascaris regressava a Portugal, com suas damas de companhia, na galé do
grego Diógenes Patrai proveniente de Castela e de Barcelona de Aragão. Vataça havia permanecido em Castela e
várias vezes em Aragão durante os últimos doze anos, mais precisamente desde 1302, quando acompanhou a infanta dona
Constança, filha do rei de Portugal Dinis I e da rainha dona Isabel de Aragão. A
infanta portuguesa fora nesse ano desposar, em Toledo, o rei de Castela,
Fernando IV e Vataça Lascaris ficara desde então na corte castelhana como aia
de dona Constança. Esta princesa lusitana tinha sido uma espécie de selo de garantia para duradoura paz,
dado por Dinis, por ocasião da assinatura do tratado de Alcanizes em 1297, o qual pusera um ponto final na guerra
entre Portugal e Castela». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A
Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.
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