sábado, 28 de março de 2015

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Ali estavam os velhos e os novos e em todos eles corria o sangue do pai, ‘o da boa memória’, da mãe, ‘aquela subtil e inteligente inglesa’, culta e devotada, que fora a ponte discreta entre o seu país de origem e Portugal…»

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O Primeiro Voo do Falcão
«(…) Um toldo de lã de cores vivas e variadas foi estendido ao longo das ruas desde o castelo até à Sé. Tudo tinha sido limpo, arejado. As lajes das ruelas varridas e lavadas e as portas repintadas. Das janelas caíam colchas e panos do melhor que as gentes possuíam e a Casa Real distribuíra também pelos moradores bons tecidos, como colchas de seda, para ornamento das fachadas. O luzidio cortejo composto por mais de duas centenas de fidalgos e damas percorreu o estreito caminho, a pé, da Alcáçova até à catedral. Cento e vinte tochas ardiam nas mãos de fidalgos e fidalgas vestidos de brocado drapejado com enfeites vindos de França e da Itália. Sob o pálio de ouro vinha o Príncipe, com oito dias de vida apenas, nos braços do tio, o estouvado Infante  Fernando, irmão amado do Rei e o outro tio, Henrique, o Navegador, mais velho e sisudo, ladeava-o. Logo atrás dona Catarina, a outra irmã do rei, muito novinha e alegre, e a austera prima dona Filipa, nos seus dezoito anos quase, e depois os fidalgos representantes das casas mais importantes do Reino com os presentes. Todo o cortejo era precedido pelos trombeteiros e tocadores de pífaros e oboés que faziam os populares gritar de alegria e cantar à sua passagem, das janelas das casas que ladeavam ruas estreitas de onde caíam flores. De seguida, e na cauda de todo o cortejo, os vassalos. Os clérigos com os seus ricos hábitos saíram da catedral para o respectivo pórtico: o primaz de Braga, arcebispo e primaz das Espanhas, e três bispos todos ricamente paramentados. O infante Henrique ia nos seus sessenta e um anos e viera de Sagres para assistir ao acto e devia olhá-los a todos com aquele pesado olhar em parte fruto de antigos pensamentos ou do sonho permanente que o invadira desde jovem e arrastara para a morte seu irmão Fernando, numa masmorra de Fez, e talvez Duarte e o outro, o estranho Pedro, eu€ tantas esperanças tivera nele e na sua arte de persuasão... Ali estavam os velhos e os novos e em todos eles corria o sangue do pai, o da boa memória, da mãe, aquela subtil e inteligente inglesa, culta e devotada, que fora a ponte discreta entre o seu país de origem e Portugal e o sangue dos Braganças onde metade era seu também. A sobrinha, a rainha, feliz e compensada pela sua maternidade, essa, apesar disso, fora marcada pelas tragédias da família e sua mãe, a orgulhosa duquesa de Coimbra, a de Urgel, como raivosamente lhe chamava o cunhado bastardo, refugiada nos claustros do seu convento, ou na sua cela de monja, essa, não estava presente. Talvez rezasse por esse neto que nunca veria e que seria o futuro algoz dos seus inimigos, quem sabe? A filha domara os ódios e os orgulhosos vitupérios do marido contra seus amigos e apoiantes de Pedro e, como Afonso era homem de boa índole, perante o olhar confundido dos Braganças, lá ia aceitando, um a um, antigos opositores. Por isso toda a família da jovem rainha punha nela as maiores esperanças. De momento só a irmã Filipa, excelente e culta rapariga, que lia e escrevia Latim e trabalhava afincadamente em textos de santidade, lendo e traduzindo obras pias e pintando iluminuras, estava a seu lado nesse dia feliz e solene. Afonso prometera-lhe reabilitar a memória do pai e isso constituía o passo essencial para o castigo dos intriguistas e seus inimigos, dos que o tinham arrastado ao descrédito e à morte. Talvez um dia Filipa, que era poeta também, escrevesse a história do pai em belos versos em latim ou português... no remanso do convento de Odivelas nos arredores de Lisboa. Dona Catarina, mais nova, era entusiasta possuidora de fundos conhecimentos de ciências, Latim e Grego. Não se esperaria outra coisa de uma filha de Duarte. Dona Catarina que, por essa altura, estava noiva do príncipe de Navarra, foi a madrinha do sobrinho e o tio Fernando padrinho, esse tio Fernando bastante irresponsável que era, aliás, o ai-jesus do tio Henrique que o adoptara e lhe fizera o seu testamento, pois continuava solteirão irrepreensível, o já velho solitário do rochedo sagrado de Sagres. Fernando, que não apreciava muito a disciplina, desde o início da contenda entre os tios, estivera sempre com o Bragança que o tratava com indulgência calculada.
O duque de Bragança achava-se tão velho que não podia, ou não quisera, deslocar-se a Lisboa. Os anos pesavam-lhe mas mandou o filho que, naquele momento, pegava num dos varões do pálio de ouro que cobria a cabecita escura, de cabelos curtos mas espessos, do bebé! O neto do velho abutre de Guimarães também estava presente. No dia em que o Principesinho era jurado rei nos paços reais de Lisboa, Fernando, conde de Arraiolos, foi feito marquês de Vila Viçosa. A mão do velho Barcelos continuava a dirigir a vontade do jovem rei Afonso e o seu poder parecia não ter fim, cimentado na alma do Monarca e de toda a nobreza que se sentia protegida pela Casa de Bragança que a liderava contra quaisquer pretensões, se o rei algum dia as manifesta de fortalecimento do poder real. Por enquanto não havia perigo e a cerimónia decorreu como era da praxe: numa cadeira ricamente ornamentada, a ama com o príncipe ao colo. O Infante Fernando à direita e, à esquerda, o tio-avô Henrique. O marquês de Valença, filho do Bragança, esse segurava, segundo o prescrito no cerimonial, o estoque desembainhado. Em volta todos os fidalgos e a alta hierarquia eclesiástica e ainda os representantes do povo. Os dois Infantes foram autorizados, pela proclamação lida em voz alta pelo arauto, a receber a homenagem em nome do Muito Alto e muito Excelente Príncipe D. João. Depois, com Fernando em primeiro lugar, foi feito o juramento: Eu recebo e reconheço e tenho por meu verdadeiro Senhor o Infante D. João Filho Primogénito Herdeiro dos mui Altos e mui Excelentes Príncipes Senhores D. Afonso e D. Isabel pela Graça de Deus Rei e Rainha de Portugal, do Algarve e Senhores de Ceuta...» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT