O Primeiro Voo do Falcão
«(…) Um toldo de lã de cores vivas e variadas foi estendido ao longo
das ruas desde o castelo até à Sé. Tudo tinha sido limpo, arejado. As lajes das
ruelas varridas e lavadas e as portas repintadas. Das janelas caíam colchas e
panos do melhor que as gentes possuíam e a Casa Real distribuíra também pelos
moradores bons tecidos, como colchas de seda, para ornamento das fachadas. O
luzidio cortejo composto por mais de duas centenas de fidalgos e damas
percorreu o estreito caminho, a pé, da Alcáçova até à catedral. Cento e vinte
tochas ardiam nas mãos de fidalgos e fidalgas vestidos de brocado drapejado com
enfeites vindos de França e da Itália. Sob o pálio de ouro vinha o Príncipe,
com oito dias de vida apenas, nos braços do tio, o estouvado Infante Fernando, irmão amado do Rei e o outro tio,
Henrique, o Navegador, mais velho e
sisudo, ladeava-o. Logo atrás dona Catarina, a outra irmã do rei, muito novinha
e alegre, e a austera prima dona Filipa, nos seus dezoito anos quase, e depois
os fidalgos representantes das casas mais importantes do Reino com os
presentes. Todo o cortejo era precedido pelos trombeteiros e tocadores de
pífaros e oboés que faziam os populares gritar de alegria e cantar à sua
passagem, das janelas das casas que ladeavam ruas estreitas de onde caíam
flores. De seguida, e na cauda de todo o cortejo, os vassalos. Os clérigos com
os seus ricos hábitos saíram da catedral para o respectivo pórtico: o primaz de
Braga, arcebispo e primaz das Espanhas, e três bispos todos ricamente
paramentados. O infante Henrique ia nos seus sessenta e um anos e viera de
Sagres para assistir ao acto e devia olhá-los a todos com aquele pesado olhar em
parte fruto de antigos pensamentos ou do sonho permanente que o invadira desde
jovem e arrastara para a morte seu irmão Fernando, numa masmorra de Fez, e
talvez Duarte e o outro, o estranho Pedro, eu tantas esperanças tivera nele e
na sua arte de persuasão... Ali estavam os velhos e os novos e em todos eles
corria o sangue do pai, o da boa memória,
da mãe, aquela subtil e inteligente inglesa,
culta e devotada, que fora a ponte discreta entre o seu país de origem e
Portugal e o sangue dos Braganças onde metade era seu também. A sobrinha, a rainha,
feliz e compensada pela sua maternidade, essa, apesar disso, fora marcada pelas
tragédias da família e sua mãe, a orgulhosa duquesa de Coimbra, a de Urgel, como raivosamente lhe
chamava o cunhado bastardo, refugiada nos claustros do seu convento, ou na sua
cela de monja, essa, não estava presente. Talvez rezasse por esse neto que
nunca veria e que seria o futuro algoz
dos seus inimigos, quem sabe? A filha domara os ódios e os orgulhosos
vitupérios do marido contra seus amigos e apoiantes de Pedro e, como Afonso era
homem de boa índole, perante o olhar confundido dos Braganças, lá ia aceitando,
um a um, antigos opositores. Por isso toda a família da jovem rainha punha nela
as maiores esperanças. De momento só a irmã Filipa, excelente e culta rapariga,
que lia e escrevia Latim e trabalhava afincadamente em textos de santidade,
lendo e traduzindo obras pias e pintando iluminuras, estava a seu lado nesse
dia feliz e solene. Afonso prometera-lhe reabilitar a memória do pai e isso
constituía o passo essencial para o castigo dos intriguistas e seus inimigos,
dos que o tinham arrastado ao descrédito e à morte. Talvez um dia Filipa, que
era poeta também, escrevesse a história do pai em belos versos em latim ou
português... no remanso do convento de Odivelas nos arredores de Lisboa. Dona
Catarina, mais nova, era entusiasta possuidora de fundos conhecimentos de
ciências, Latim e Grego. Não se esperaria outra coisa de uma filha de Duarte. Dona
Catarina que, por essa altura, estava noiva do príncipe de Navarra, foi a
madrinha do sobrinho e o tio Fernando padrinho, esse tio Fernando bastante
irresponsável que era, aliás, o ai-jesus do tio Henrique que o adoptara
e lhe fizera o seu testamento, pois continuava solteirão irrepreensível, o já
velho solitário do rochedo sagrado de Sagres. Fernando, que não apreciava muito
a disciplina, desde o início da contenda entre os tios, estivera sempre com o
Bragança que o tratava com indulgência calculada.
O duque de Bragança achava-se tão velho que não podia, ou não quisera,
deslocar-se a Lisboa. Os anos pesavam-lhe mas mandou o filho que, naquele
momento, pegava num dos varões do pálio de ouro que cobria a cabecita escura,
de cabelos curtos mas espessos, do bebé! O neto do velho abutre de Guimarães
também estava presente. No dia em que o Principesinho
era jurado rei nos paços reais de Lisboa, Fernando, conde de Arraiolos, foi
feito marquês de Vila Viçosa. A mão do velho Barcelos continuava a
dirigir a vontade do jovem rei Afonso e o seu poder parecia não ter fim,
cimentado na alma do Monarca e de toda a nobreza que se sentia protegida pela
Casa de Bragança que a liderava contra quaisquer pretensões, se o rei algum dia
as manifesta de fortalecimento do poder real. Por enquanto não havia perigo e a
cerimónia decorreu como era da praxe: numa cadeira ricamente ornamentada, a
ama com o príncipe ao colo. O Infante Fernando à direita e, à esquerda,
o tio-avô Henrique. O marquês de Valença, filho do Bragança, esse segurava,
segundo o prescrito no cerimonial, o estoque desembainhado. Em volta todos
os fidalgos e a alta hierarquia eclesiástica e ainda os representantes do povo.
Os dois Infantes foram autorizados, pela proclamação lida em voz alta pelo arauto,
a receber a homenagem em nome do Muito
Alto e muito Excelente Príncipe D. João. Depois, com Fernando em
primeiro lugar, foi feito o juramento: Eu
recebo e reconheço e tenho por meu verdadeiro Senhor o Infante D. João Filho
Primogénito Herdeiro dos mui Altos e mui Excelentes Príncipes Senhores D.
Afonso e D. Isabel pela Graça de Deus Rei e Rainha de Portugal, do Algarve e
Senhores de Ceuta...» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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