Anno
Domini MMVI
«Por que um homem corre? Sendo
este homem de quem se fala a generalidade de toda a espécie, aquele que todos
representa; o todo, todos, sem excepção, porque não existe, neste caso, a excepção,
que fique bem claro. Mas a pergunta permanece: o que o faz correr? No sentido literal da expressão, uma
perna à frente da outra, o pé direito depois do pé esquerdo e vice-versa, pois
não há primeiro lugar quando se trata do corpo humano. Será pelo prazer do
sofrimento em si, todas aquelas centenas de músculos trabalhando em prol de um
bem-estar físico e psicológico que será usufruído
após o exercício? Uns são movidos pela glória; os segundos e os minutos
com que palmilham o terreno significam vitórias, dinheiro e notoriedade, ou
desilusão, desconsolo e lamento. A outros nada os motiva mais do que a perda de
alguns quilos, com a finalidade única e exclusiva de agradar ao outro género,
ou ao mesmo, dependendo do gosto de cada um. Seja como for, a soma dos
fundamentos tem base num só: todos correm pela vida; nada mais os move. Nem a
esse homem que sobe as enormes escadarias internas dos Arquivos Secretos do
Vaticano, a tão alta hora da noite. A túnica preta confunde-se à fraca
iluminação do local nada secreto que alberga documentos manifestamente sigilosos.
Na mão, alguns papéis amarelados pelo tempo, provavelmente a razão de tanta
urgência. Um ruído destoante de seus próprios passos o alarma: veio de cima, veio de baixo, de onde veio?,
é a pergunta expressa no seu rosto. Pára, olha, escuta; nada mais se ouve além
da sua respiração alterada. O suor lhe escorre pela face como torrente de mar.
Apressa-se, pois já é tarde, a fim de regressar aos aposentos que lhe são
destinados na Cidade do Vaticano, ou devemos dizer país, porque é o que é na
realidade, com as suas regras, leis, credo e sistema político.
Monsenhor
Firenzi é o nome do homem. Nós o sabemos, porque é o que ele rabisca à luz
minguada do candeeiro da escrivaninha, uns garranchos escritos às pressas num
envelope grande, já selado, onde coloca os papéis que trazia na mão. Ele é o
remetente, é certo; o destinatário não se consegue discernir por causa dos
problemas de iluminação supracitados e também porque monsenhor Firenzi quase
encosta a cabeça no envelope, talvez porque o suor lhe tenha embaçado os óculos
e não consiga enxergar a própria letra de maneira adequada. Terminada essa
operação, fecha o dito invólucro e sai do quarto. Aonde irá a essa hora da
noite, tendo em vista que o sino da
Basílica de São Pedro badala à uma da manhã? O silêncio espraia-se de
novo depois da badalada. Está frio, mas isso não parece aborrecer esse servo de
Deus, que continua avançando e alcança depressa o lado de fora, os passeios que
levam à Praça de São Pedro, à maravilha elíptica de Bernini, com toda a
simbologia cristã e pagã, porque os artistas não são gente de se render a uma
só arte ou fé, e a eles podem juntar-se o restante das outras pessoas. Um ruído
perpassa os ouvidos do monsenhor. Pára; desta vez, suores frios lhe
percorrem o corpo; a respiração fica ofegante. Não há dúvida: são passos,
talvez um guarda suíço na ronda nocturna. O melhor é não ficar à espera. O
monsenhor apressa os passos, a caminho sabe-se lá de onde, com um envelope na
mão, à uma da madrugada, hora de estar dormindo com os anjos, se fosse uma
noite comum; não é, ao que parece, pelo menos em vista do olhar patente no
rosto do monsenhor, as mãos coladas ao corpo a ampararem o envelope. Já na
praça, arrisca olhar para trás e avista um vulto escuro, ao fundo. Não é um
guarda suíço; não está vestido como tal. Talvez não esteja em serviço. Não
acelerou o passo, como o monsenhor Firenzi, que agora começa a correr. O vulto
negro continua, na mesma passada consistente e cadenciada, nem depressa nem
devagar, mas não corre. Quem o faz é o monsenhor Firenzi, que arrisca outro
olhar para trás. Quem o visse pensaria que era maluco; mas ninguém andava por
ali àquela hora, apenas ele e o vulto negro, um andando, outro correndo. Não parece haver relação entre eles, mas
quem pode afirmar?
O
monsenhor deixa a praça e prossegue pela Via della Conciliazone. Roma dorme o
sono dos justos, dos injustos, das pessoas de bem, de mal, dos pobres, dos
ricos e remediados, dos pecadores e dos santos: todos se lembraram de não sair
à rua nesta noite, pelo menos ali, naquela rua; das outras não se pode saber
neste momento. O monsenhor desacelera; opta pelo passo rápido, quase correndo,
mas sem correr, que fique bem claro. O vulto trilha o mesmo caminho e parece
conquistar alguma distância, embora não corra. Algo brilhante lhe transparece
de uma das mãos. O clérigo corre a toda velocidade que a idade e os nervos
permitem a um monsenhor. Corra pela vida monsenhor Firenzi; da corrida dependem
a vida e a morte. Um baque abafado assalta-lhe os ouvidos, e ele se segura à
primeira coisa que vê. Foi rápido, já passou; um som estranho, abafado, e
depois nada, mais nada. O vulto aproxima-se, ainda longe, mas aquele baque se
transforma agora numa dor aguda que lhe percorre as costas. Leva a mão onde
dói. É próximo ao ombro; sangue, o sangue da nova e eterna aliança entre a vida
e a morte, o equilíbrio ou não dos membros e dos órgãos. Os passos podem ser
ouvidos novamente; o vulto negro está perto; a dor entranha-se cada vez mais no
corpo. Monsignore Firenzi, per favore.
Che cosa volete da me?, pergunta o
monsenhor, quase a desfalecer. Io voglio
a te. Pega no telemóvel e fala numa língua que não é italiano, talvez
alguma outra do leste. Monsenhor Firenzi repara na tatuagem de uma serpente que
lhe aparece junto ao pulso. Segundos depois, ao lado dos dois homens estaciona
uma carrinha negra, cujos vidros, também escuros, não permitem ver se há mais
alguém em seu interior além do condutor. O homem agarra o monsenhor ferido e
coloca-o dentro da carrinha, sem violência, como se fosse um saco leve. Non si preoccupi.
Non state morendo». In Luís
Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.
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