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«Do que eu gostava mais no Jardim
Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito
direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagorosas sem mover um
músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se
falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos
anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos
à maneira de fins de rebuçado na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota
o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai,
os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à
de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a
tempos latidos aflitos de caniche. Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar
livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes
idênticas a professoras de ginástica solteiras, pinguins trôpegos de joanetes
de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros; no tanque
dos hipopótamos inchava a lenta tranquilidade dos gordos, as cobras
enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilos acomodavam-se sem
custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares. Os plátanos entre as
jaulas acinzentavam-se como os nossos cabelos, e afigurava-se-me que, de certo modo,
envelhecíamos juntos: o empregão de ancinho que empurrava as folhas para um balde
aparentava-se, sem dúvida, ao cirurgião que me varreria as pedras da vesícula para
um frasco coberto de rótulo de adesivo; uma menopausa vegetal em que os caroços
da próstata e os nós dos troncos se aproximavam e confundiam irmanar-nos-ia na mesma
melancolia sem ilusões; os queixais tombavam da boca como frutos podres, a pele
da barriga pregueava-se de asperezas de casca. Mas não era impossível que um hálito
cúmplice nos sacudisse as madeixas do ramos mais altos, e uma tosse qualquer rompesse
a custo o nevoeiro da surdez em mugidos de búzio, que a pouco e pouco adquiriam
a tranquilizador tonalidade da bronquite conjugal.
O restaurante do Jardim, onde o
odor dos animais se insinuava em farrapos diluídos no fumo do cozido,
apimentando de uma desagradável sugestão de cerdas o sabor das batatas e
conferindo à carne gostos peludos de alcatifa, encontrava-se ordinariamente
repleto, em doses equitativas, de grupos excursionistas e de mães impacientes,
que afastavam com os garfos balões à deriva como sorrisos distraídos, a arrastarem
pontas de guita atrás de si, tal as noivas volantes de Chagall a bainha dos vestidos.
Senhoras idosas vestidas de azul, com tabuleiros de bolos na barriga, ofereciam
travesseiros mais poeirentos do que as suas bochechas folhadas, perseguidas pelo
fastio pegajoso das moscas. Cães esqueléticos de retábulo medieval hesitavam entre
a biqueira dos empregados e as salsichas que sobravam dos pratos para o chão à laia
de dedos supérfluos, luzidios da brilhantina do óleo. Os barcos que pedalavam
no tanque ameaçavam a todo momento entrar vogando pelas janelas abertas, a
oscilarem sobre ondas hostis de guardanapos de papel. E lá fora, indiferente à
música fosca que os altifalantes embaciavam, aos lamentos viúvos do boi-cavalo,
à jovialidade de pandeiretas cansadas dos excursionista e ao pasmo da minha
admiração comovida, o professor preto continuava a deslizar imóvel no rinque de
patinagem debaixo das árvores com a majestade maravilhosa e insólita de um
andor às arrecuas.
Se fôssemos, por exemplo,
papa-formigas, a senhora e eu, em lugar de conversarmos um com o outro neste
ângulo de bar, talvez que eu me acomodasse melhor ao seu silêncio, às suas mãos
paradas no copo, aos seus olhos de pescada de vidro boiando algures na minha
calva ou no meu umbigo, talvez que nos entender numa cumplicidade de trombas
inquietas farejando a meias no cimento saudades de insetos que não há, talvez
que nos uníssemos, a coberto do escuro, em coitos tão tristes como as noites de
Lisboa, quando os neptunos dos lagos se despem do lodo do seu musgo e passeiam
nas praças vazias ansiosas órbitas ferrugentas. Talvez que finalmente me falasse
de si. Talvez que atrás da sua testa de Cranach exista, adormecida, uma ternura
secreta pelos rinocerontes. Talvez que, palpando-me me descubra de repente
unicórnio, a abrace, e você agite os braços espantados de borboleta cravada em
alfinete, pastosa de ternura. Compraríamos bilhetes para o comboio que circula
no jardim, de bicho em bicho, o seu motor de corda, evadido de um
castelo-fantasma de província, acenando de passagem à gruta de presépio dos
ursos brancos, tapetes reciclados. Observaríamos oftalmologicamente a
conjuntivite anal dos mandris, cujas pálpebras se inflamam de hemorroidas
combustíveis. Beijar-nos-íamos diante das grades dos leões, roídos de traça como
casacos velhos, a arregaçarem os beiços sobre as gengivas desmobiladas. Eu afago-lhe
os seios à sombra oblíqua das raposas, você compra-me um gelado de pauzinho ao
pé do recinto dos palhaços, bofetadas de sobrancelha para cima que um saxofone
trágico sublinha. E teríamos recuperado dessa forma um pouco da infância que a
nenhum de nós pertence, e teima em descer pelo escorrega num riso de que nos
chega, de longe em longe e numa espécie de raiva, o eco atenuado». In António
Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
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