«(…) Uma rajada sacode as vidraças, a chuva redobra de intensidade, os
chapéus-de-chuva inclinam-se contra o vento e nas lajes molhadas cintilam os
candeeiros. Sob a chuva, uma fila de carros sua maioria pretos, espera ao longo
da rua. Quando um chega à porta do jardim, os convidados descem e o porteiro,
munido de guarda-chuva, protege os casacos
de vison cujas proprietárias percorrem de uma corrida, ou aos saltinhos, a
vereda. Um capacho de grandes dimensões acolhe os pezinhos, às vezes grandes, e
deixa-os prontos para pisarem o soalho polido sem afectar as suas amarelas
cintilações. Contudo, na continuação do capacho há uma passadeira encarnada que
absorve os restos da humidade. Ao fundo do átrio, um criado de libré e uma
criada de touca e avental pretos recebem casacos e chapéus, entregam um cartãozinho
com um número e indicam a escada. Ao fundo do primeiro lanço, um enorme espelho
regista as figuras de quem sobe: primeiro, o cimo da calva ou do toucado;
depois, a cara e o que se lhe segue. Aí, a escada bifurca-se. O lanço da
direita conduz a uma porta onde aguardam a embaixatriz e o embaixador, A
embaixatriz enverga um vestido de
cocktail preto com lantejoulas de azeviche, de Balenciaga. O fato do embaixador
é escuro, com riscas brancas quase invisíveis, e foi feito num alfaiate de Saville
Row. Fernando Anglada pára diante do espelho, compõe a gravata e sobe pelo
lanço da direita. Ao pisar o décimo degrau sorri e a escada alonga-se,
alonga-se, até se perder ao longe a porta de moldura dourada e sumptuosa onde
os embaixadores vão sendo sucessivamente substituídos pela rainha da Holanda e
o príncipe consorte, por Nikita Kruschev e senhora, pelo general de Gaulle acompanhado
por Jean-Paul Sartre e Brigitte Bardot, pela Corte Pontifícia e o Sacro Colégio
de todos os purpurados, incluindo os in
pectore, por outros pares e outras corporações também ilustres. Ao
chegar quase ao fim da escada, Anglada faz uma vénia. A embaixatriz
responde-lhe com um sorriso. O embaixador, nesse momento, está distraído. Fernando
Anglada sobe um pouco mais depressa os últimos degraus. Sem deixar de sorrir,
estende as mãos e acolhe nelas a que a embaixatriz lhe entrega. Oh, M.ª L'Ambassatrice!
Que je suis content de vous revoir! Vous êtes plus charmante que jamais! Comment allez-vous, ma chérie? Oh,
Monsieur L'Ambassadeur! Je viens d'apprendre que vous êtes en train de
partir pour Washington. C'est dommage, mon cher, c'est u'n énorme dommage! Madríd
se souviendra toujours de vous deux, leva à boca os dedos da mão direita juntos
em cone. Le couple le plus exquis de la diplomacie. Mais, je comprends, votre
carrière… Um clérigo magro, de cara loura e fina, parecido com Leslie Howard
(que em paz descanse), dirige o seu olhar por cima do ombro nu de madame. Tem,
sobre a sotaina preta, uma faixa de cor.
A embaixatriz e o embaixador estendem as mãos a novos convidados. O
capelão ouve novos elogios ao pensamento teológico francês. Fernando Anglada,
suavemente empurrado, mistura-se com os grupos dos que já homenagearam a embaixatriz
e mostraram o seu assombro perante as audácias de Yves Congar. Fernando Anglada
sorri, saúda. Há um monte de caras de gesticulação tranquila ou reprimida, com
abundância de sorrisos; geralmente vêem-se também os pescoços e os ombros:
colares falsos, embora discretos, gravatas italianas. Não é fácil averiguar o
que se passa abaixo dos ombros, a não ser por mero acaso, mas em geral
predominam os ventres abundantes e os peitos de artificial ousadia. Anglada,
distraidamente, pega numa taça de champanhe
que lhe oferecem, passa os lábios pela borda e deixa-a sobre uma consola. Não bebes, Nandito? Fernando
Anglada volta-se ligeiramente: Curra Varela, de taça na mão, exibe um meio
sorriso meio esgar que lhe franze os lábios. Estava nas nuvens, minha querida.
Alguém me disse que estavas no campo. Como
vão as tuas vacas? Sabes perfeitamente que não deixaria de vir à
embaixada por nada deste mundo. Champanhe francês, caviar e a oportunidade de
falar um pouco de francês, que se me vai emperrando. Não bebes? É
verdade que andas mal do fígado ou trata-se de uma vil calúnia? Fernando
Anglada pestaneja, estende a mão e pega na taça que Curra lhe oferece; leva-a
aos lábios, mas não bebe. Limita-se a introduzir a ponta da língua no líquido e
a saborear». In Gonzalo Torrente Ballester, Off-Side, Ediciones Destino, 1969,
Off-side, Editorial Caminho, Lisboa, 2000, ISBN 972-21-1371-2.
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