«Que difícil que
é a vida dos homens, pensou ela. Eles não têm asas para voar por cima das
coisas más». In Sophia de Mello
Breyner Andresen,
‘A Fada Oriana’
«Estou
exausta. Completamente exausta. Quando o despertador toca, abro os olhos e levanto
a cabeça que parece pesar mais do que o corpo todo. Carrego imediatamente no
botão e o silêncio regressa ao quarto. Devo ter acordado pelo menos quatro
vezes durante a noite. Duas antes do Miguel chegar, mais uma quando o ouvi
entrar e ainda outra, perto das seis. Levanto-me a custo sem acender a luz,
tentando não acordar o Miguel que dorme do lado direito da cama de barriga para
baixo e a cara encostada à almofada. Apetece-me passar-lhe os dedos pelo cabelo
ondulado, mas em vez disso. puxo as raízes junto às minhas têmporas, imaginando
por um segundo como ficariam os meus olhos se os rasgasse numa plástica,
enquanto massajo o couro cabeludo com a ponta dos dedos em movimentos
circulares e me dirijo para o quarto da Carolina que ainda está a dormir. A luz
entra de chofre pelas janelas da sala e da cozinha ainda sem cortinas e
percorre o hall de entrada. Abro
ligeiramente as persianas do quarto cor-de-rosa e arrumo mecanicamente os
bonecos que estão encostados à parede junto aos pés da cama. Sento-me e começo
a fazer-lhe festas até ela acordar. Saboreio o toque doce da sua pele, a seda
dos seus cabelos louros em
desalinho. Faz um esgar e vira a cabeça para o outro lado.
Finalmente acorda, estende-me os braços e levanta-se, reclamando leite com
chocolate e pão com doce. As pernas finas e pequenas ginasticam-se até à
cozinha onde lhe preparo o pequeno-almoço. Vivo sozinha há três anos, desde que
o Pedro saiu de casa. Um dia acordou, virou-se para mim e disse: Vou viver
com a Sandra. Estou apaixonado por ela. Nem queria acreditar. A Sandra era
a professora de Tae Kwon Do. Ele
andava no Tae Kwon Do há um ano. De
vez em quando, falava-me dela, mas nunca liguei. Ou então não quis ligar. As
mulheres treinam o mecanismo da negação com excessiva facilidade, como um vício
mesquinho que se adquire quase sem se dar por isso. Devia ter percebido que
alguma coisa estava mal depois da Carolina ter nascido, mas estava demasiado
absorvida pela miúda e pelo lançamento da editora. É que no fundo tive duas
filhas ao mesmo tempo, andava exausta. Mas não tanto como agora. Sento-me na
mesa de ripas amarelas, que deve ser de jardim, mas que eu achei que ficava bem
na cozinha. A Carolina bebe por um copo com pozinhos brilhantes que rodopiam à
volta do Winnie the Pooh e do seu amigo Tiger e lambuza o pão com doce que cai no pijama cor-de-rosa onde
bonecos com antenas na cabeça pulam com os braços erguidos. Olha para mim
aflita e passa o dedo pela nódoa. Desculpe, mãe. Respondo-lhe que não
faz mal, que sei que não fez de propósito, e ela continua a comer e a chuchar o
leite pela tampa do copo. Mãe.... Sim, filha. O Miguel está a dormir? Sim, querida. Posso ir lá dar-lhe um beijinho? Não, querida. A cara
contorce-se numa expressão de tristeza. Oh...
porquê? Dás logo à noite, está
bem? E ele está cá, logo à
noite? Começo a impacientar-me. Não sei, querida, logo se vê. Dá mais
uma dentada, calculo que seja a penúltima. Mãe... Sim, filha. Por que é que o Miguel não vive cá em
casa? Porque tem a casa dele. Mas a Sandra vive com o pai... Não,
querida, o pai é que vive com a Sandra. Fica a olhar para mim de boca aberta,
e vejo-lhe os neurónios a mil à hora dentro do cérebro, a darem as pernas e os
braços uns aos outros. Vá, despacha-te, que já estamos atrasadas. Estamos
sempre atrasadas. Regressamos ao quarto onde a visto em menos de um minuto e
lhe calço uns ténis cor-de-rosa, pavorosos, que ela exibe com orgulho no
colégio por causa da palavra mágica que têm bordada: Barbie. Por fim, penteio-a, e ela deixa-se levar, dócil como
uma boneca. Pede-me para pôr aquele travessão que tem uma flor azul e que não
encontro em lado nenhum; por isso, convenço-a a segurar o cabelo com outro, é
muito mais giro, com o Tweety, é de
crescida, estás a ver, e ponho o par no meu cabelo para provar que tenho razão.
A mãe é mesmo maluca.
Maluca estava eu
quando engravidei do Pedro, ele que nunca falou em filhos e sempre disse que
não tinha estofo para ser pai. Estofo é para os bancos dos carros,
respondi-lhe, quando ele começou com a conversa do costume, mesmo depois de lhe
ter dito que estava grávida e que não ia, de certeza, fazer um aborto. Não tive
a culpa. Qual é a probabilidade de ter duas ovulações num mês? Eu estava
habituada a fazer as contas e conhecia os sintomas dos dias de perigo, mas não
tenho nenhum alarme que liga e faz barulho se faço uma ovulação a seguir à
outra. É raro, mas, às vezes, acontece, disse o médico, batendo com a caneta
ritmicamente em cima da ficha, a menina está na idade, foi o seu relógio biológico.
Pu… que pariu o relógio biológico. E o tipo todo contente. Porque é que os
obstetras gostam tanto de ver as
doentes grávidas? Deve ser uma tara como outra qualquer. O Pedro ainda
reclamou, mas com 28 anos já não podia dizer que ainda era muito novo e que eu
lhe estava a estragar a vida. Coitado do Pedro, se gostasse mesmo dele nunca
lhe tinha feito uma maldade destas. Andávamos há seis meses, eu fazia trinta
daí a uma semana e vivia obcecada com bebés. Agora, vivo obcecada com os
fins-de-semana em que a Carolina vai para o pai e posso dormir até à uma da
tarde, levar o pequeno-almoço à cama e ficar a namorar a tarde inteira com o
Miguel, como dois adolescentes. Falta-me sono. Sono e tempo. Os
bens mais escassos da minha vida. Entramos no carro e desfio a habitual
corrente de recomendações: põe o cinto, não abras a janela, juízo na escola,
venho-te buscar às seis. O caminho é um pára-arranca infernal e demoro vinte
minutos a percorrer menos de sete quilómetros, como se fosse a primeira prova
de um longo dia de trabalho e de chatices. Despedimo-nos com vários beijos e
abraços e deixo a minha princesa entre vinte crianças e uma educadora com um ar
absorto e doce. Quando chego à editora, o Nuno já lá está. Gel no cabelo,
óculos de aros finos, aquele ar de menino bem comportado que lhe dá imenso
charme. Com 42 anos, ainda parece um miúdo. E é. A um canto, um
blusão preto de cabedal dormita em cima de um capacete também preto, e o ar
está impregnado de um perfume qualquer da moda. Bom dia, estás bem? ,pergunta, sem levantar os olhos do
écran do computador onde uma tabela cheia de números o absorve. Cansada,
muito cansada. Desvia os olhos, arqueia as sobrancelhas e observa-me
longamente. Mas sempre bonita. Isso é porque pus base, foi no elevador, em
menos de vinte segundos, estou a ficar boa nisto. Não. Isso é porque és
mesmo bonita. Abre a gaveta e retira de lá um embrulho comprido e fino. Toma.
Comprei-te isto ontem. Abro o presente. É um coça-costas de madeira, daqueles
que se vendem nas feiras. É para usares quando o Miguel estiver cansado. O
Miguel nunca está cansado. Por isso é que ando com ele. Toma. Humor com humor se
paga. Ligas demasiado ao sexo. Observo-lhe o polo, as calças de marca, o
telemóvel topo de gama com ligação wap e não sei que mer… mais em cima da
secretária ao lado de uma caneta de colecção». In Margarida Rebelo Pinto, Alma
de Pássaro, Oficina do Livro, 2001/2002, ISBN 972-857-955-1.
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