segunda-feira, 23 de março de 2015

Contos da Montanha. Miguel Torga. «Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre, e os que, por parentesco ou mais chegada convivência, lhe herdaram o pouco bragal, bem sabiam que a grandeza da herança estava apenas no íntimo…»

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A Maria Lionça
«Galafura, vista da terra chá, parece o talefe do mundo. Um talefe encardido pelo tempo, mas de sólido granito. Com o céu a servir-lhe de telhado e debruçada sobre o Varosa, que corre ao fundo, no abismo, quem quiser tomar-lhe o bafo tem de subir por um carreiro torto, a pique, cavado na fraga, polido anos a fio pelos socos do Preguiças, o moleiro, e pelas ferraduras do macho que leva pela arreata. Duas horas de penitência. Lá, é uma rua comprida, de casas com craveiros à janela, duas quelhas menos alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e uma fonte a jorrar água muito fria. Montanha. O berço digno da Maria Lionça. Fala-se nela e paira logo no ar um respeito silencioso, uma emoção contida, como quando se ouve tocar a Senhor fora. E nem ler sabia! Bens, os seus dons naturais. Mais nada. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre, e os que, por parentesco ou mais chegada convivência, lhe herdaram o pouco bragal, bem sabiam que a grandeza da herança estava apenas no íntimo sentido desses panos. Na recatada alvura que traziam da arca e na regularidade dos fios do linho de que eram feitos, vinha a riqueza duma existência que ia ser a legenda de Galafura. Quando Deus a levou, num Março que se esforçava por dar remate prazenteiro a três meses de invernia sem paralelo na lembrança dos velhos, Galafura não quis acreditar. Embora a visse estendida no caixão, lívida e serena, aspergia sobre o cadáver a água benta do costume, sem que o seu rude entendimento concebesse o fim daquela vida. O próprio prior, tão acostumado à transitória duração terrena, ao ser chamado à pressa para lhe dar a extrema-unção, ungiu-a como se ela fosse mãe dele. Tremia. Até o latim lhe saía da boca aos tropeções, parecendo que punha mais fé no arquejar do peito da moribunda do que na epístola de S. Tiago. Apenas o Gil, o médico, a tomar-lhe o pulso e a senti-lo a fugir, não teve qualquer estremecimento. Receitou secamente óleo canforado e saiu. Mas o Gil pertencia a outros mundos.
Médico municipal em Carrazedo, vinha a quem o chamava, dando a santos e a ladrões a mesma tintura de jalapa e a mesma digitalina. Por isso, a insensibilidade que mostrou não teve significado para ninguém. A rotina do ofício empedernira-lhe os sentimentos. O ele declarar calmamente, já no estribo do cavalo, que não havia nada a fazer, foi como se um vedor afirmasse que a fonte da Corredoura ia secar. Sabia-se de sobejo que a fonte da Corredoura era eterna, por ser um olho marinho. E assim que a moribunda exalou o último suspiro, e do quarto a Joana Ró deu a notícia, lavada em lágrimas, cá de fora respondeu-lhe um soluço prolongado, que, em vez de embaciar nos espíritos a imagem da Maria Lionça, a clarificava. E o enterro, no outro dia pela manhã, talvez por causa do ar tépido da Primavera que começava e da singeleza das flores campestres que bordavam as relheiras do caminho, pareceu a todos uma romagem voluntária e simples ao cemitério, onde deixavam como uma Salve-rainha pela alma dos defuntos o corpo da Maria Lionça. Não. Não podia morrer no coração de ninguém uma realidade que em setenta anos fora o sol de Galafura.
Em pequenina, logo o seu riso escarolado encheu a aldeia de lés a lés. Velhos e novos acostumaram-se desde o primeiro instante àquele rosto miúdo e rosado onde brilhavam dois olhos negros e perscrutadores. Depois, durante a meninice e a mocidade, foi ela ainda o ai Jesus da terra. Qualquer coisa de singular a preservava do monco das constipações, dos remendos mal pregados, das nódoas de mosto nas trasfegas. Airosa e desenxovalhada, dava o mesmo gosto vê-la a guardar cabras, a comungar ou a segar erva nos lameiros. E quando, já mulher, se falava pelas cavas nas moças casadoiras do lugar, nenhum rapaz lhe pronunciava o nome sem uma secreta emoção. Além de ser a cachopa mais bonita, dada e alegre da terra, era também a mais assente e respeitada. Quer nas mondas, quer nas esfolhadas, o seu riso significava tudo menos licença. E ninguém lhe punha um dedo. Olhavam-na numa espécie de enlevo, como a um fruto dum ramo cimeiro que a natureza quisesse amadurecer plenamente, sem pedrado, num sítio alto onde só um desejo arrojado e limpo o fosse colher. Embora igual às outras, pela pobreza e pela condição, havia à sua volta um halo de pureza que simbolizava a própria pureza de Galafura. Na pessoa da Maria Lionça convergiam todas as virtudes da povoação. Quem é que merecia a dádiva de uma riqueza assimIn Miguel Torga, Os Contos da Montanha, Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999, ISBN 978-972-201-651-3.

Cortesia DQuixote/JDACT