A
Maria Lionça
«Galafura,
vista da terra chá, parece o talefe
do mundo. Um talefe encardido pelo
tempo, mas de sólido granito. Com o céu a servir-lhe de telhado e debruçada
sobre o Varosa, que corre ao fundo, no abismo, quem quiser tomar-lhe o bafo tem
de subir por um carreiro torto, a pique, cavado na fraga, polido anos a fio pelos
socos do Preguiças, o moleiro, e pelas ferraduras do macho que leva pela
arreata. Duas horas de penitência. Lá, é uma rua comprida, de casas com
craveiros à janela, duas quelhas menos alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e
uma fonte a jorrar água muito fria. Montanha. O berço digno da Maria Lionça. Fala-se nela e
paira logo no ar um respeito silencioso, uma emoção contida, como quando se
ouve tocar a Senhor fora. E nem ler sabia! Bens, os seus dons
naturais. Mais nada. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre, e os que,
por parentesco ou mais chegada convivência, lhe herdaram o pouco bragal, bem
sabiam que a grandeza da herança estava apenas no íntimo sentido desses panos.
Na recatada alvura que traziam da arca e na regularidade dos fios do linho de que
eram feitos, vinha a riqueza duma existência que ia ser a legenda de Galafura.
Quando Deus a levou, num Março que se esforçava por dar remate prazenteiro a
três meses de invernia sem paralelo na lembrança dos velhos, Galafura
não quis acreditar. Embora a visse estendida no caixão, lívida e serena,
aspergia sobre o cadáver a água benta do costume, sem que o seu rude
entendimento concebesse o fim daquela vida. O próprio prior, tão acostumado à
transitória duração terrena, ao ser chamado à pressa para lhe dar a
extrema-unção, ungiu-a como se ela fosse mãe dele. Tremia. Até o latim lhe
saía da boca aos tropeções, parecendo que punha mais fé no arquejar do peito da
moribunda do que na epístola de S. Tiago. Apenas o Gil, o médico, a tomar-lhe o
pulso e a senti-lo a fugir, não teve qualquer estremecimento. Receitou
secamente óleo canforado e saiu. Mas o Gil pertencia a outros mundos.
Médico
municipal em Carrazedo, vinha a quem o chamava, dando a santos e a ladrões a
mesma tintura de jalapa e a mesma digitalina. Por isso, a insensibilidade
que mostrou não teve significado para ninguém. A rotina do ofício
empedernira-lhe os sentimentos. O ele declarar calmamente, já no estribo do
cavalo, que não havia nada a fazer, foi como se um vedor afirmasse que a fonte
da Corredoura ia secar. Sabia-se de sobejo que a fonte da Corredoura era
eterna, por ser um olho marinho. E assim que a moribunda exalou o último
suspiro, e do quarto a Joana Ró deu a notícia, lavada em lágrimas, cá de fora
respondeu-lhe um soluço prolongado, que, em vez de embaciar nos espíritos a
imagem da Maria Lionça, a
clarificava. E o enterro, no outro dia pela manhã, talvez por causa do ar
tépido da Primavera que começava e da singeleza das flores campestres que
bordavam as relheiras do caminho,
pareceu a todos uma romagem voluntária e simples ao cemitério, onde deixavam
como uma Salve-rainha pela alma dos defuntos o corpo da Maria Lionça. Não. Não podia morrer no coração de
ninguém uma realidade que em setenta anos fora o sol de Galafura.
Em
pequenina, logo o seu riso escarolado
encheu a aldeia de lés a lés. Velhos e novos acostumaram-se desde o primeiro
instante àquele rosto miúdo e rosado onde brilhavam dois olhos negros e
perscrutadores. Depois, durante a meninice e a mocidade, foi ela ainda o ai Jesus
da terra. Qualquer coisa de singular a preservava do monco das constipações,
dos remendos mal pregados, das nódoas de mosto nas trasfegas. Airosa e
desenxovalhada, dava o mesmo gosto vê-la a guardar cabras, a comungar ou a segar erva
nos lameiros. E quando, já mulher, se falava pelas cavas nas moças
casadoiras do lugar, nenhum rapaz lhe pronunciava o nome sem uma secreta
emoção. Além de ser a cachopa mais bonita, dada e alegre da terra, era também a
mais assente e respeitada. Quer nas mondas, quer nas esfolhadas, o seu riso
significava tudo menos licença. E ninguém lhe punha um dedo. Olhavam-na numa
espécie de enlevo, como a um fruto dum ramo cimeiro que a natureza quisesse
amadurecer plenamente, sem pedrado, num sítio alto onde só um desejo arrojado e
limpo o fosse colher. Embora igual às outras, pela pobreza e pela condição,
havia à sua volta um halo de pureza
que simbolizava a própria pureza de Galafura. Na pessoa da Maria
Lionça convergiam todas as virtudes da povoação. Quem é que merecia a dádiva de uma riqueza assim?» In
Miguel Torga, Os Contos da Montanha, Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999, ISBN
978-972-201-651-3.
Cortesia
DQuixote/JDACT